Curso Bíblico Online – Entendendo o Livro da Sabedoria
‘A SABEDORIA É UM ESPIRITO AMIGO DO SER HUMANO’ (Sab 1,6)
Caminho para a justiça e a vida
1ª Aula: Introdução Geral
O livro da Sabedoria foi escrito em grego, no final do séc. I a.C., na colônia judaica de Alexandria, no Egito. O título dessa obra aponta para a “Sabedoria” como o tema principal. De fato, na primeira parte, o autor destaca a importância da Sabedoria como caminho para a justiça e a vida (1,1-6,21). Na parte central do livro, há uma descrição da origem e da natureza da Sabedoria (6,22-9,18); na última parte, o autor faz um resgate da ação da Sabedoria na história (10-19).
Contudo, o tema central do livro é a justiça, que está intimamente relacionada com a Sabedoria. Desde primeiro versículo, lemos: “Amem a justiça, vocês que julgam a terra” (1,1), pois “a justiça é imortal” (1,15). O tema da justiça perpassa todo o livro: “Vestirá a justiça como couraça, e usará como capacete um julgamento que não se pode subornar” (5,18); “Conhecer-te é a justiça perfeita, e reconhecer teu poder é a raiz da imortalidade” (15,3).
Ao ler os textos relacionados à justiça, constata-se que os justos, mencionados cerca de 27 vezes no livro da Sabedoria, sofrem, resistem e gritam por justiça e julgamento contra os ímpios (14 vezes), também chamados de injustos (6 vezes): “Vamos oprimir o pobre e o justo [...] Vamos submeter o justo a insultos e torturas, para sabermos de sua serenidade e avaliarmos sua resistência” (2,10.19); “Então o justo estará de pé, cheio de coragem, diante daqueles (ímpios) que o oprimiram e lhe desprezaram os esforços" (5,1).
Opressão, insultos, torturas, desprezo... Os judeus da diáspora alexandrina são discriminados e oprimidos por parte dos governantes gregos ou romanos e seus colaboradores. Em meio a essa realidade instável, não é uma fantasia absurda fazer um apelo aos que detêm o poder.
Conhecendo a cidade de Alexandria e a comunidade judaica
A cidade de Alexandria, no Egito, berço do livro da Sabedoria, foi fundada em 322 a.C. por Alexandre, o Grande. Já sob Ptolomeu IIe III (285-221 a.C.), a cidade, com um porto artificial voltado ao Mediterrâneo, tinha um grande movimento comercial e cultural, com a sua famosa Biblioteca, o Museu e o famoso farol, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Alexandria, ao lado de Roma e Antioquia, era uma das três principais cidades poderosas e prósperas no mundo greco-romano.
No tempo do livro da Sabedoria, por volta do ano 30 a.C., Alexandria contava com cerca de 600 mil habitantes, entre os quais destaca-se a comunidade judaica, com cerca de 150 mil judeus, chegando a ocupar dois dos cinco quarteirões da cidade. E certo que essa cidade foi o centro mais importante da comunidade judaica fora da Palestina.
Historicamente, o Egito foi um dos lugares preferidos para os judeus fugidos da fome, de conflitos, de guerras e de outras dificuldades. A presença de mercenários judeus para servirem aos egípcios é bem conhecida, como os da colônia estabelecida por volta de 550 a.C., em Elefantina, uma ilha do rio Nilo, cerca de 900 quilômetros ao sul da atual capital Cairo, do Egito. No período grego (323-50 a.C.), os colonos judeus militares, com o apoio dos Ptolomeus, estabeleceram-se em vários pontos do Egito, tomando-se a mais forte concentração de judeus no mundo antigo.
Sob o governo do Segundo Ptolomeu, Filadelfo (285- 246 a.C.), os judeus adquiriram quase todos os direitos referentes à cidadania. Em Alexandria, eles se organizaram como politeuma, isto é, dentro da cidade viviam de forma quase autônoma em suas atividades econômicas, políticas e religiosas. Com numerosas sinagogas, os judeus mantinham a fé e a identidade cultural do seu povo. Nessa cidade, o Antigo Testamento foi traduzido do hebraico para o grego, a Bíblia comumente conhecida como a Tradução dos “Setenta” ou “Septuaginta”.
Na vida cotidiana, os judeus alexandrinos desempenhavam um papel muito ativo, principalmente por atuarem na manutenção da ordem, por meio do exercício militar, além de serem despachantes e coletores de taxas nas atividades portuárias. Porém, eles não podiam participar inteiramente da vida social e política da cidade grega se não abdicassem completamente de sua identidade judaica: seus costumes e cultos religiosos. E enfrentando hostilidade, marginalização e até mesmo perseguição aberta dos gentios, muitos judeus não mais se preocupavam em preservar seus costumes e sua religião de origem.
Por volta do ano 30 a.C., Alexandria passa a ser administrada por Roma. A situação dos judeus se agrava radicalmente:
1- Os destacamentos de mercenários, inclusive judeus, perdem espaço, “emprego”, à medida que a manutenção da ordem começa a ser exercida pelas legiões romanas com a pax romana.
2- A função de coletores das taxas também passa a ser executada pelos cidadãos gregos, excluindo os judeus do mercado.
3- O governo romano impõe o imposto pessoal, chamado laografia, a toda a população sem cidadania plena, empobrecendo especialmente a população judaica rural e de baixa renda.
Tudo isso leva a comunidade judaica a uma profunda crise e à divisão interna. De um lado, um grupo dos judeus alexandrinos persiste na abertura à cultura helenista para buscar o direito à cidadania plena e melhor condição social, abandonando inclusive a fé dos antepassados para assumir uma sociedade idólatra; de outro lado, cresce o empobrecimento e a perseguição para a maioria dos judeus por ter mantido a fé e a identidade cultural do povo judaico.
Em meio à realidade de perda de status e de espaços na sociedade e do aumento da pobreza, somando-se a isso o desprezo e a hostilidade social, é que nasce o livro da Sabedoria. Como reagir diante da discriminação e perseguição dos “injustos” ou “ímpios”? Como ajudar os judeus fiéis à fé dos seus antepassados a manter sua própria identidade e esperança na vida?
Autoria, destinatários
O título original desse livro na Bíblia grega é “Sabedoria de Salomão”. Conforme a tradição judaica, o rei Salomão era considerado o patrono da Sabedoria em Israel (lRs 3,5-15), por isso, essa obra foi dedicada a ele. Na antiga tradução latina, o título é apenas “Livro da Sabedoria”, designação que, em geral, aparece nas Bíblias católicas.
O autor é desconhecido, não dá seu nome, nem se apresenta no livro, mas, nas entrelinhas dos textos, podemos colher algumas informações sobre a autoria:
a) Conhecedor da literatura bíblica e da tradição judaica: o tema da imortalidade, em Sb 1,13-15 e 2,23-24, é inspirado em Gn 1-3; a tradição sobre Salomão, em Sb 7-9, se inspira nos textos de lRs 3-11 e 2Cr 1-9; a descrição da fabricação de ídolos, em Sb 13,10-19, vem de Is 44,9-20; a tradição do Êxodo, em Sb 11-19, é baseada no livro do Êxodo.
b) Possui domínio da língua, da filosofia e dos costumes gregos, a saber: cosmovisão prática da filosofia grega, em Sb 7,17-20; contemplação da natureza e o culto de seres da criação nos costumes gregos em Sb 13,1-9; alimento dos deuses na tradição grega em Sb 19,21 etc.
c) Defensor da fé e da identidade cultural do povo judaico (2,12; 9,1): ajuda a discernir a respeito da Sabedoria de Israel como o caminho para a justiça, liberdade e vida (1-5); mostra a natureza e a grandeza da Sabedoria, dom de Deus (6-9); exalta a ação da Sabedoria de Deus na criação e na história (10-19).
É provável que o autor seja um judeu, conhecedor do mundo helenista, provavelmente vivendo em Alexandria.
Ele, junto com o seu povo, no Egito, vivenciou e enfrentou ameaças constantes à sua vida, fé e cultura. Assim, ele escreveu um livro para reforçar a fé e reavivar a esperança de seus irmãos judeus, fazendo um resgate da Sabedoria de Deus manifestada na história da humanidade e do povo de Israel.
O livro é dirigido também aos gentios e aos judeus que renunciaram ou estão em vias de renunciar à sua religião. Nessa obra, em contraposição ao helenismo materialista e idólatra, há uma apresentação da verdadeira Sabedoria que vem de Deus como a fonte da justiça, liberdade e vida para todas/os, opondo-se à idolatria e à injustiça (13-15). Os principais alvos de crítica são os governantes gregos e romanos, para que exerçam sempre suas funções com justiça (1,1-15; 6,1-11); e também aos sábios gregos, para que reconheçam a superioridade da Sabedoria de Israel (7,15-23). Além disso, ironiza e critica a pax romana do Imperador (14,22).
Conhecendo o livro da Sabedoria
A cultura e a sociedade helenista (greco-romana), baseadas na idolatria, são apresentadas como geradoras de injustiças. Para o autor, a alternativa é uma sociedade que reconheça e procure o Deus vivo e a sua Sabedoria, que necessariamente levará à justiça e à vida para todas as pessoas.
A Sabedoria é acreditar no Deus de Israel e ser fiel à sua Lei. Ela não é adquirida por mérito humano, mas um dom de Deus, e conduz à justiça e à verdadeira vida. O autor reforça o papel da Sabedoria divina como condutora e protetora do povo de Deus na história.
Dentre as diversas propostas para estruturar o livro da Sabedoria, escolhemos o modelo que divide o texto em três partes: a) 1,1-6,21: amar a justiça e rejeitar as estruturas de morte; b) 6,22-9,18: origem, natureza e meios para adquirir a Sabedoria; c) 10,1-19,22: ação da Sabedoria na história.
Primeira parte (1,1-6,21): amar a justiça e rejeitar as estruturas de morte.
Nesta primeira parte, há um convite para viver a justiça. Neste bloco, há uma contraposição entre o modo de vida dos justos e o dos ímpios, os que vivem sem Deus. Os inimigos podem ser os judeus que abandonaram a Lei judaica e a tradição do seu povo.
O livro inicia-se com um apelo aos governantes, para amar a justiça e rejeitar as estruturas injustas, que são geradoras de morte (1,1-15). Em seguida, temos um discurso apresentando a maneira de pensar e de agir dos ímpios. Conforme o pensamento do autor, eles fizeram pacto com a morte, são inescrupulosos e usam de violência para atingir seus objetivos (1,16-2,24). No entanto, a vida dos justos está nas mãos de Deus, e eles serão recompensados. Indo na contramão da teologia oficial, o livro afirma que é melhor uma vida sem filhos do que ter filhos de uniões ilegítimas, e a morte prematura pode ser graça de Deus (3,1-4,19). E para finalizar essa parte, retomando o início do livro, o autor reforça o apelo aos governantes, afirmando que o poder é dado por Deus para o serviço da justiça (6,1-21). Em toda esta primeira parte, transparece o pensamento da recompensa do justo e da punição dos ímpios após a morte.
Segunda parte (6,22-9,18): origem, natureza e meios para adquirir a Sabedoria.
Nesta segunda parte do livro, o sábio afirma que publicará tudo sobre a origem da Sabedoria. Para ele, “grande número de sábios é a salvação para o mundo” (6,24). O autor, como se fosse o rei Salomão, afirma que todos os seres humanos são iguais e têm direito à Sabedoria. Ela “é um tesouro inesgotável para o ser humano” (7,14). A origem do conhecimento está em Deus (7,15-21). Depois de apresentar os atributos da Sabedoria, o autor conclui: “Ela é emanação do poder de Deus” (7,25) e “tudo governa de maneira correta” (8,1; cf. 7,22-8,1). Apresentando a Sabedoria como mulher, pela qual ele está apaixonado e a quem sonha unir-se, o sábio ensina os jovens que estão se afastando da tradição judaica (8,2-16). Por fim, temos uma ampliação de lRs 3,6-9: a oração de Salomão. O rei pede, com insistência, para obter a Sabedoria: caminho para a imortalidade (8,17-9,18).
Terceira parte (10-19): ação da Sabedoria na história.
Destacando a libertação do justo, o autor apresenta o agir da Sabedoria na história da humanidade, desde Adão até a história de José (10,1-14). Em seguida, há uma longa recordação da experiência do Êxodo, enfatizando que os inimigos serão punidos e os justos recompensados (10,15- 19,22). Em meio à história do Êxodo, há um longo tratado contra a idolatria nos capítulos 13-15. Assim como Deus defendeu o povo hebreu da opressão dos egípcios, Ele o fará em todos os tempos (19,22).
O livro é um convite para reconhecer a presença da Sabedoria de Deus que conduz e protege a nossa vida. É possível esquematizar o livro da Sabedoria da seguinte forma:
1,1-6,21: a justiça e a Sabedoria
1,1-15: exortação à justiça.
1,16-2,24: discurso dos ímpios sobre a vida presente.
3,1-4,19: desígnios de Deus.
4,20-5,23: discurso dos ímpios no Juízo.
6,1-21: exortação aos governantes sobre a Sabedoria.
6,22-9,18: origem e natureza da Sabedoria
6,22-25: introdução.
7-8: discurso de Salomão.
9: oração de Salomão.
10-19: a ação da Sabedoria na história
10,1 -21: a Sabedoria protege os patriarcas.
11-19: a Sabedoria dirige a história no Êxodo.
O livro da Sabedoria foi escrito em um momento de forte crise política e religiosa da comunidade judaica de Alexandria, no Egito. Nele encontramos um forte apelo para que as pessoas, especialmente os governantes, amem a justiça e busquem a Sabedoria, entendida como fidelidade a Deus e à Lei. É a Sabedoria que age na história da humanidade, desde as origens até o momento presente, e agirá em todos os tempos e lugares.
Organização deste livro
Cada texto bíblico que abrimos nos dá a possibilidade de pisar no chão da vida de pessoas e grupos em suas lidas diárias, suas esperanças, sonhos e fé no Deus da vida. Para entender o livro da Sabedoria, apesar de ter dezenove capítulos, organizamos este subsídio com seis aulas. O livro da Sabedoria é uma porta que nos permite entrar na comunidade de Alexandria e nos anima em nossa caminhada de fé e esperança.
Neste estudo, faremos o seguimento percurso:
1ª aula: Introdução Geral: Para entender um texto biblico é fundamental responder às seguintes questões: Quando e onde foi escrito? Quem escreveu? Para quem escreveu? Qual a finalidade? Como era o contexto social, econômico e religioso em que nasceu o livro?
2ª aula: com o tema Chamadas/os para viver a justiça (1,1-15), queremos ouvir, compreender e assumir o serviço da justiça. É um convite para renovar nossa fé no Espírito de Deus e na Sabedoria, que não habitam as pessoas que vivem a injustiça. Precisamos acreditar na justiça e resistir à cultura de morte em que vivemos. No ditado do povo, ouvimos: “A justiça sem a força é impotente; o poder sem a justiça é tirania”.
3ª aula: em uma sociedade injusta, quem vive a justiça é perseguido. Com o tema Assumir os riscos de uma vida segundo a justiça (1,16-2,20), vamos refletir e rezar a realidade de pessoas e grupos que são perseguidos por causa da justiça. Queremos nos comprometer com a prática da justiça e descobrir formas de nos solidarizar com as pessoas que são perseguidas por causa da justiça. Vamos fazer valer o ditado popular: "Procure acender uma vela em vez de amaldiçoar a escuridão”.
4ª aula: O poder dado por Deus é para o serviço da justiça (6,1-11), tema que provoca revisão sobre o poder em todas as dimensões: política, econômica, social e religiosa. Como seguidoras e seguidores do Deus da Vida, temos a missão de ser promotoras/es da Paz, usando o poder que temos para a defesa e a promoção da vida ameaçada, sem nunca desanimar: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.
5ª aula: O ser humano fabrica ídolos para fins lucrativos (15,7-19). Com esse tema, refletiremos a sociedade idolátrica em que vivemos e o uso de ídolos para manipular e distorcer a verdade e a justiça. A ambição do poder e do ter não conhece limites e usa de todos os meios, especialmente o religioso, para manipular, oprimir e manter a corrupção. Juntemos nossas vozes para denunciar e desmascarar os ídolos que insensibilizam o ser humano ante a situação de injustiça social. Relembremos o ditado do povo: “Desconfia da pessoa que não fala e do cão que não ladra”.
6ª aula: A Sabedoria ªde Deus sempre acompanha o seu povo. Rezando o tema A Sabedoria liberta o povo da escravidão (10,15-11,3), buscaremos compreender o agir de Deus ao longo da história do seu povo e da nossa história. Diferentemente do culto propagado pelo poder opressor, a fé em Deus garante vida digna e livre da opressão. Em meio à realidade em que vivemos, precisamos confiar que “Deus escreve certo por linhas tortas”.
Ler, entender e refletir o Livro da Sabedoria é um grande desafio. Que possamos entrar, com amor e respeito, no dia a dia da comunidade de Alexandria, perceber suas buscas, sonhos e esperanças e, assim, encontrar novas luzes, para iluminar a vida de nossas comunidades. Renovemos a nossa certeza de que “o Espírito do Senhor enche todo o universo. Ele, que sustenta tudo o que existe, tem conhecimento de tudo o que se diz” (1,7).
Para completar e finalizar o nosso estudo assista novamente o vídeo e logo abaixo na caixa de comentários deixe o seu parecer.
Acesse aqui para ir para a 2ª aula: https://leituraorante.comunidades.net/2-aula-chamados-as-para-viver-a-justica