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18.1 - 1ª Aula - 06/9 - Visão panorâmica
18.1 - 1ª Aula - 06/9 - Visão panorâmica

CURSO BIBLICO ONLINE

1ª CARTA AOS TESSALONICENSES

 

1º AULA -  VISÃO PANORÂMICA DA VIDA E MISSÃO DE PAULO

  1. Conhecendo Paulo

Para entender uma carta, é preciso conhecer o autor e o destinatário. Vamos tentar conhecer Paulo e os destinatários de suas cartas para saber qual mensagem elas trazem para nós hoje. Muitos dos problemas que Paulo enfrentou continuam desafiando as Igrejas hoje. Poderíamos mencionar alguns: como alimentar nossa espiritualidade? Como conciliar o trabalho profissional e o anúncio do Evangelho? Como viver os conflitos sem ficar dilacerado? Como combinar fé e política? Como combinar Evangelho e culturas diferentes? Qual o lugar da mulher nas Igrejas? Como fazer para que  o Evangelho seja uma Boa Nova para os pobres?

 

 

Paulo se apresenta como Israelita: “Pois eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim (Rm 11,1); "circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus" (Fl 3,5); "São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão? Também eu" (2Cor 11,22). Entretanto, de acordo com os Atos dos Apóstolos (22,3), Paulo nasceu em Tarso, na Cilícia, Ásia Menor, atual Turquia (At 9,11; 21,39; 22,3; 9,30; 11,25), região fora de Israel. 

 

Tarso era uma Cidade bonita, grande; conforme os cálculos de alguns estudiosos, tinha mais ou menos 300.000 habitantes. Muita gente, ruas estreitas, casas pequenas, vida apertada, muito barulho! Para o Sul, a cidade se abria para o mar Mediterrâneo; para o Norte, se espremia ao pé de uma serra que subia até três mil metros de altura. Tarso era um centro importante de cultura e de comércio. Possuía um porto muito ativo. A estrada romana que fazia a ligação entre o Oriente e o Ocidente passava por lá. Então devemos nos perguntar: o que ele sendo judeu, está fazendo fora de sua terra natal?

 

A resposta parece ser esta: um judeu nascido na diáspora (palavra que vem do grego e significa "dispersão") normalmente era mais aberto do que seus irmãos de raça nascidos na Terra Santa. O contato diário com realidades e culturas diferentes era forte convite a não se fechar numa redoma. A própria sobrevivência forçava esses judeus a serem potencialmente mais abertos e tolerantes em relação aos que pensavam e agiam de outra forma. 

 

A diáspora é um fenômeno antigo na vida do povo de Deus. Desde o século 6 a.C., muitos judeus foram levados para a Ásia Menor. É possível que a família de Paulo seja descendente de um desses grupos. Daí se explica o fato de ele ter nascido e vivido fora da Palestina. 

 

Havia uma comunicação muito intensa entre Jerusalém e a diáspora; romarias, visitas, promessas, estudo.  Jerusalém era o centro espiritual de todos os judeus. Assim se entende como Paulo, nascido em Tarso, foi criado em Jerusalém (At 22,3; 26,4-5; cf. 23,16). Ele mesmo dizia: "Todos os judeus sabem como foi minha vida desde minha juventude e como, desde o início, vivi no meio do povo e em Jerusalém" (At 26,4).  Assim, podemos afirmar que Paulo recebeu forte influência de duas culturas em sua educação: 

 

a) Influência do judaísmo: Isto significa que ele estuda as Escrituras Sagradas e conhece a história do seu povo; frequenta a sinagoga, aprende as orações, serve a Deus, convive com o próximo e ajuda os pobres. Paulo nos diz: "Ouvistes certamente de minha conduta outrora no judaísmo, de como perseguia sobremaneira e devastava a Igreja de Deus e como progredia mais do que muitos compatriotas da minha idade, distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas" (GI 1,13-14).

 

b) Influência da cultura greco-romana: Os judeus que vivem fora da Palestina aprendem a conviver com a cultura greco-romana, isso significa que Paulo teve de aprender bem a língua por meio da leitura e da escrita e estudar as obras de importantes autores gregos.

 

A influência que Paulo recebe, tanto do judaísmo como da cultura greco-romana, facilita seu trabalho evangelizador no mundo greco-romano. Ele é um missionário incansável. Ao longo de mais ou menos 15 anos de andanças, chega a percorrer dezesseis mil quilômetros por mar e por terra e, de acordo com a tradição, ainda está em plena atividade quando sofre o martírio em Roma, por volta do ano 67 d.C. O mesmo Império Romano que matou Jesus é responsável pela morte de Paulo. 

 

Em poucas palavras, os judeus que viviam no exterior, apesar de manter sua identidade religiosa e cultural, logo abriram-se para o mundo, com os riscos que isso comportava. Um dos resultados dessa abertura é sem dúvida a tradução para o grego da Bíblia Hebraica, tradução conhecida como Septuaginta, que circulou pelas comunidades judaicas que viviam no exterior bem antes do nascimento de Jesus. E note-se que essa tradução contém muitas adaptações do texto hebraico, sinal de que eles não tinham escrúpulos em "inculturar-se". Na terra de Paulo os judeus usavam essa tradução, ao passo que no "território sagrado" usava-se o texto hebraico com tradução simultânea em aramaico. Esse detalhe é suficiente para começarmos a ver Paulo como fruto de um ambiente, época e cultura. 

 

O próprio nome dele ajuda a caminhar nessa direção. Ele se chamava Saulo (Saul, em homenagem ao primeiro rei da história do povo de Deus, pois ambos eram da tribo de Benjamim), mas adotou ou recebeu desde o berço um nome "inculturado" (Paulo), como costumavam fazer muitos judeus da diáspora. De acordo com Lucas (Atos 13,9), a mudança de Saulo para Paulo se dá quando ele inicia a primeira das três grandes viagens, em vista do contato com os pagãos. Mas Paulo nasceu justamente nesse ambiente de diáspora e em contato com não-judeus. É, portanto, mais provável que tivesse, desde o nascimento, recebido o nome "Saulo-Paulo" e que, em contato com comunidades compostas em sua maioria por não-judeus, simplesmente tenha assumido o nome Paulo. 

 

Não se sabe quando nasceu. Deveria ter sido alguns anos mais novo que Jesus. Hoje sabe-se que Jesus deve ter nascido em torno do ano 6 antes de Cristo. O nascimento de Paulo deve ter acontecido por volta do ano 5 da nossa era. Ele próprio afirma que foi circuncidado ao oitavo dia, como ordenava a Lei (Levítico 12,3), tornando-se assim membro do povo de Deus. É judeu legítimo e foi educado como tal (Filipenses 3,5). 

 

  1. A educação que recebeu: A influência da cidade grande

Tarso era uma cidade grande, uma espécie de fronteira entre a cultura semítica (Oriente) e greco-romana (Ocidente). Culturalmente, a Tarso dessa época rivalizava com Atenas, sendo famosa por abrigar escolas filosóficas como a dos estoicos e dos cínicos (https://sanfilosofia.wordpress.com/2011/09/23/epicurismo-estoicismo-e-cinismo/). Sem dúvida, Paulo foi influenciado pelo estilo de vida de sua cidade natal, pela cultura e modo de ser de seus cidadãos. De fato, quando escreveu a primeira carta, ofereceu aos tessalonicenses um critério importante dentro da babel que eram as cidades grandes daquele tempo: "Examinem tudo e fiquem com o que é bom" (1Tessalonicenses 5,21). 

 

É fora de dúvida que o estilo de vida e o ambiente cultural de Tarso tenham ajudado Paulo em sua educação. Nessa cidade de cultura preponderantemente grega havia o túmulo de Sardanápalo, tido como o fundador da cidade. No túmulo estava escrito: ''Viajante, come, bebe e goza a vida; o resto não tem qualquer importância". Mais tarde, escrevendo aos coríntios, Paulo retoma esse pensamento, mostrando que, sem a fé na ressurreição, o melhor que poderíamos fazer seria seguir o conselho do velho fundador: "Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, pois amanhã morreremos" (1 Coríntios 15,32b).

 

 Em Tarso, os devotos de Ísis, deusa da mitologia grega, cuja adoração se estendeu por todas as partes do mundo greco-romano, e posteriormente, do mundo inteiro. É cultuada como modelo da mãe e da esposa ideais, protetora da natureza e da magia. É a amiga dos escravos, pescadores, artesãos, oprimidos, assim como a que escutava as preces dos opulentos, das donzelas, aristocratas e governantes. É também a deusa da maternidade e da fertilidade, em certas ocasiões vestiam roupas azul-celeste para se identificar com a divindade, sobretudo nas festas. Isso sem dúvida serviu de base para Paulo falar de uma "veste" que identifica o cristão, como se fosse uma carteira de identidade (veja, por exemplo, Romanos 13,14; 2 Coríntios 5,2; Efésios 4,20-24; 6,11; Colossenses 3,10-14). 

 

Pertencendo ao império romano, Tarso tinha seus mercados de escravos. Sem dúvida Paulo terá visto cenas de compra de escravos. Isso serviu de ponto de partida para que, mais tarde, usasse essa imagem para falar da importância da morte e ressurreição de Jesus (por exemplo, em 1Coríntios 6,20; 7,21-25). Em suas cartas, usa várias vezes essa imagem do "resgate/compra" de escravos para ilustrar a ação de Jesus em favor dos cristãos. 

 

A língua em que Paulo escreve e normalmente se comunica é o grego. Algumas décadas antes, em Tarso, nasceu um educador famoso, chamado Atenodoro. Atenodoro foi professor e amigo do imperador Augusto (Tarso exportava educadores). Algumas frases mostram os conteúdos desse educador que, sem dúvida, deve ter influenciado Paulo. Por exemplo: "Para cada criatura, a sua consciência é Deus" (veja como isso repercute no pensamento de Paulo em Romanos 14,22a: "Guarde para você, diante de Deus, a consciência que você tem"), e: "Comporte-se com o próximo como se Deus visse você, e fale com Deus como se os outros ouvissem você" (este é, segundo 1Tessalonicenses 2,3-7, o modo transparente de ser e de agir de Paulo diante das pessoas e de Deus). 

 

As escolas filosóficas, sobretudo os estóicos e os cínicos, exerciam grande força de persuasão em Tarso. Muitos estudiosos de Paulo afirmam que ele é devedor sobretudo dos estóicos, particularmente quando fala que tudo pode naquele que o fortalece (Filipenses 4,13), ou na famosa passagem de Romanos 8,35-39, quando pergunta: "Quem nos poderá separar do amor de Cristo?" (Veja também o texto de 1Timóteo 6,7-8, mesmo recordando que há passagens semelhantes nos sapienciais, sobretudo Provérbios 30,8-9.) 

 

A influência que o ambiente social de Tarso exerceu sobre a formação de Paulo é grande. Os esportes, a vida jurídica (o Direito Romano), a arquitetura, a arte, e a cultura estão presentes em seus escritos como metáforas da vida cristã. Basta pensar, por exemplo, na "parada militar" dos generais vencedores que serviu de base para Paulo descrever sua participação no triunfo glorioso de Cristo sobre a morte. A imagem usada e a dos generais que entram triunfantes em Roma após a batalha, com prisioneiros que serão provavelmente executados em seguida. Em tais cortejos, um escravo vai a frente espalhando perfume, que representam vida para os vencedores e morte para os vencidos (veja 2 Coríntios 2,14-16).

 

Outro detalhe significativo é que em Tarso as mulheres não saíam à rua sem o véu persa, sinal de que estavam sob a proteção de um homem e que tinham sua dignidade preservada. Uma mulher de Tarso vestindo seu elegante véu dava a entender que tinha dignidade e um marido que a amava e cuidava dela. Parece que Paulo, escrevendo mais tarde aos coríntios e ordenando às mulheres que cobrissem a cabeça para profetizar, quisesse ter presente esse dado (1 Coríntios 11,2-16). 

 

 3 . A educação em casa

Em casa Paulo recebe formação judaica. Afirma ser da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus, circuncidado no oitavo dia (Filipenses 3,5). Conhecedor do grego, deve ter conhecido a Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento. Com cerca de cinco anos deve ter aprendido do pai o núcleo essencial da Lei (Deuteronômio 5-6. Veja especialmente o que se diz em 11,19: "...Vocês devem ensiná-las a seus filhos"). Aprendeu o grande louvor (Salmos 113 a 118) cantado nas grandes festas judaicas, o sentido das principais festas (Páscoa, Pentecostes, Cabanas etc.) e o louvor diário, rezado pelos judeus a cada manhã (Salmos 146-150). É com essa idade que aprende a ler e escrever. A partir dos cinco anos Paulo rezou, de manhã e pela tarde, todos os dias, o "Shemá, Israel" (Deuteronôrnio 5,1), que o pai lhe ensinou. 

 

Nada se sabe da mãe de Paulo. Mas certamente a figura materna influiu na sua personalidade. Frequentemente ouvimos falar apenas do aspecto severo de Paulo. Todavia, em suas cartas há provas de muita ternura e afeto típicos da mãe, sinal de que com ela aprendeu a ser carinhoso, a doar-se sem medida, como mãe para os fiéis (Gálatas 4,19; 1 Tessalonicenses 2,7-8). Sabemos, pelos Atos dos Apóstolos, que teve uma irmã (Atos 23,16). A profissão que exercia (Atos 18,3) deve tê-la aprendido com o pai. 

 

 4. A educação na escola sinagogal

Ao lado da sinagoga os judeus normalmente tinham uma escola sinagogal. Paulo, como todo menino judeu, começou a frequenta-la aos seis anos. Acompanhava-o certamente o pedagogo, um escravo encarregado de levar os meninos à escola. Mais tarde, Paulo usará a imagem do pedagogo para falar tanto dos evangelizadores que passaram depois dele por Corinto (veja 1Coríntios 4,14-17) quanto para falar da Lei (Gálatas e Romanos). O pedagogo carregava os apetrechos do menino (tabuinha de cera, estilete para escrever...). Na escola, os meninos sentavam no chão e escreviam com estilete de ferro numa tabuinha de cera apoiada sobre os joelhos. Os primeiros anos de escolinha eram dedicados à História de Israel, seus episódios mais importantes, patriarcas e matriarcas, heróis e heroínas (veja Romanos 9,4-5). Aí Paulo teve o primeiro contato com as expectativas da chegada do Messias. 

 

Aos dez anos o aluno entrava no "segundo grau", a fase da lei oral. Era preciso entrar em contato com a casuística rabínica e farisaica. Deve ter sido um momento muito difícil para Paulo e o que mais o marcou, custando-lhe sacrifício ao se desfazer dele em sua conversão (o "esterco" de que fala em Filipenses 3,8). Os fariseus consideravam a lei oral tão importante quanto a Lei escrita, à mesma altura dos dez mandamentos. Parece ser essa a época à qual a carta aos Colossenses se refere, quando diz: "Não pegue, não prove, não toque" (2,21). Uma educação baseada mais nos tabus, nas proibições e pecado do que na liberdade e na graça. 

 

 5. A educação em Jerusalém

Ao completar quinze anos, Paulo deve ter-se mudado para Jerusalém a fim de continuar os estudos e se tornar rabi. Era a orientação rabínica que assim determinava. Estudar em Jerusalém era buscar o grau acadêmico mais elevado no mundo judaico. A preparação intelectual e acadêmica de Paulo foi primorosa. 

 

Além disso, os preceitos rabínicos prescreviam que aos dezoito anos o jovem devia casar-se. Em Jerusalém frequentou a escola do Templo, dos doutores da Lei e fariseus, a mais importante "escola superior" do mundo judaico daquele tempo. Foi aluno de Gamaliel, fariseu, doutor da Lei e membro do Sinédrio, estimado por todo o povo, segundo os Atos dos Apóstolos (5,34). Paralelamente ao estudo, devia também trabalhar, como faziam seus professores, por mais famosos que fossem. Esse detalhe é importante para entender o modo de ser e de agir de Paulo mais tarde,  quando trabalha com as próprias mãos para não ser peso econômico para as comunidades e para não misturar anúncio do Evangelho com dinheiro e comércio (1Ts 2,9). Com essa atitude ele se distancia radicalmente dos outros evangelizadores cristãos. Distancia-se também da mentalidade grega, segundo a qual os estudados não deviam sujar as mãos com trabalhos destinados a escravos. 

 

Gamaliel foi discípulo de Hillel, personagem famosa já no tempo de Jesus. Era de caráter flexível e conciliador, cuja corrente teológica se opunha ao rigor da Lei defendido pela escola de Shammai. A flexibilidade e espírito de conciliação recebidos de Gamaliel foram importantes no modo como Paulo educa as comunidades que funda mais tarde.

 

O jovem Paulo sentou literalmente aos pés de Gamaliel, pois o mestre lecionava de pé, e os alunos estavam sentados em círculo ao redor dele. Nessa fase da vida, Paulo estuda o Antigo Testamento em hebraico com uma tradução oral aramaica. O professor faz a "exegese" do texto: explica as várias interpretações, os novos enfoques, incentivando, com perguntas, os alunos a entrar no debate. Devia ser uma espécie de "chuva de ideias" com discussões acaloradas. Paulo é devedor desse modo de ensinar, para nós bastante difícil de seguir. Basta ler, por exemplo, Romanos e Gálatas para sentir como está presente essa forma para nós um tanto estranha de raciocinar. Os "chutes" que dá em certas interpretações do Antigo Testamento também se devem a essa formação acadêmica em Jerusalém (por exemplo, 1 Coríntios 9,9-10). 

 

Como todos os meninos judeus da época, Paulo recebeu sua formação básica na casa dos pais, na sinagoga do bairro e na escola ligada à sinagoga. A formação básica compreendia: aprender a ler e escrever; estudar a Lei de Deus e a história do povo; assimilar as tradições religiosas; aprender as orações, sobretudo os salmos. O método era: pergunta e resposta; repetir e decorar; disciplina e convivência. 

 

Além da formação básica em Tarso, Paulo recebeu uma formação superior em Jerusalém. Estudou aos pés de Gamaliel (At 22,3). Esse estudo tinha as seguintes matérias: 

 

  1. A Lei de Deus, chamada Torá: compreendia os cinco primeiros livros da Bíblia (o Pentateuco).O estudo se fazia através de leituras frequentes, até conhecer tudo de memória.

 

2. A Tradição dos Antigos: atualizava a Lei de Deus para o povo. Tinha duas partes, que eles chamavam, na língua deles, Halaká e Hagadá. A Halaká ensinava como viver a vida de acordo com a Lei de Deus. Compreendia os costumes e as leis complementares, reconhecidas como tais pelas autoridades competentes. Havia a Halaká dos fariseus, a mais estrita, e a dos saduceus. Paulo se formou na Tradição dos Fariseus (FI 3,5; At 26,5). A Hagadá ensinava como ler a vida à luz da Lei de Deus. Não tinha aprovação oficial das autoridades. Era mais livre. Compreendia as histórias da Bíblia. O jeito de se lembrar e ler a história antiga ajudava o aluno a ler sua própria história e a descobrir nela os apelos de Deus. 

 

  1. A Interpretação da Bíblia, chamada Midrash. Midrash significa busca. Ensinava as regras e o jeito de se buscar o sentido da Sagrada Escritura para a vida do povo e das pessoas. Ou seja, ensinava a descobrir que a janela do texto, por onde se vê o passado do povo, é também espelho onde se vê o hoje do mesmo povo.

 

A leitura da Bíblia era o eixo da formação. Marcava a piedade do povo. "Desde criança" (2Tm 3,15), os judeus aprendiam a Bíblia. Era sobretudo a mãe, em casa, quem cuidava de transmiti-la aos filhos (2Tm 1,5 e 3,14). Assim, desde pequeno, Paulo aprendeu que "toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, corrigir, educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa obra" (2Tm 3,16-17; cf. Rm 15,4; 1Cor 10,6.11). Nesta prática do povo judeu está a origem da "leitura orante" que hoje fazemos da Bíblia. 

 

Enquanto Paulo estudava em Jerusalém, vivia em Nazaré um outro jovem, chamado Jesus. Era pobre. Não teve condições de estudar em Jerusalém. Para sobreviver, trabalhava na roça e na carpintaria. Paulo e Jesus, os dois, ao que parece, nunca se encontraram em vida (cf. 2Cor 5,16). Jesus era cinco a oito anos mais velho que Paulo. Os dois devem ter recebido a mesma formação básica em casa, na sinagoga e na escola ligada a sinagoga.

 

5. A educação farisaica

Em nossa linguagem, a palavra "fariseu" está normalmente associada a "pessoa falsa e fingida". Contudo, o sentido primeiro dessa palavra hebraica é "separado". Os fariseus surgiram cerca de dois séculos antes de Cristo e, entre as coisas boas que nos deixaram, encontra-se a fé na ressurreição dos mortos. Nos evangelhos sinóticos os fariseus, junto com os doutores da Lei, estão entre os maiores adversários de Jesus. 

 

Os fariseus tinham consciência de ser uma minoria separada. Não eram muitos, mas faziam bastante barulho com seu modo de ser e de agir. Alguns estudos dizem que no tempo de Jesus e de Paulo o grupo dos fariseus não chegava a dez mil pessoas. Sua característica mais importante talvez seja a escrupulosa prática de toda a Lei escrita e também oral. De fato, juntamente com o texto escrito do Antigo Testamento, defendiam a chamada torá oral, ou seja, tudo o que veio sendo transmitido oralmente tinha peso e status de Lei, e por isso devia ser praticado. Os fariseus se distinguem, pois, de todos os demais grupos do tempo de Jesus pela observância rigorosa dos mínimos detalhes da Lei. Nos evangelhos, Jesus evidentemente critica essa postura, chamando os fariseus e doutores da Lei de hipócritas, ou seja, mascarados e fingidos (por exemplo, o capítulo 23 de Mateus), Mas não é certo estudar o movimento farisaico apenas a partir das críticas que os evangelhos lhes fazem. O texto de Mateus 23, por exemplo, parece refletir muito mais a situação de algumas comunidades cristãs na década de 80 do que propriamente o conflito de Jesus com esse grupo e o dos doutores da Lei. De fato, no tempo em que foi escrito o evangelho de Mateus (depois do ano 80), os cristãos tinham sérios problemas com os fariseus e doutores da Lei, os únicos grupos judaicos importantes que sobreviveram à destruição do Templo de Jerusalém no ano 70. 

 

Paulo era fariseu. Ele o afirma em Filipenses 3,5. Não sabemos se seu pai também o era, tendo recebido dele a formação farisaica, conforme se diz em Atos 23,6 (Lucas nem sempre é fiel intérprete de Paulo; muitas vezes se dá o contrário: o Paulo dos Atos diz coisas que Lucas gostaria que fossem ditas). É melhor supor que tenha optado por ser do partido farisaico a partir da formação que teve em Jerusalém sobretudo com Gamaliel.  Lucas, autor dos Atos dos Apóstolos, afirma que Gamaliel era fariseu (Atos 5,34). Mais adiante, quando está preso em Jerusalém, Paulo afirma ter sido "educado nesta cidade, formado na escola de Gamaliel, seguindo a linha mais escrupulosa dos nossos antepassados, cheio de zelo por Deus..." (22,3). Sabe-se que não se deve dar valor absoluto às informações dos Atos a respeito de Paulo (disso falaremos adiante). Mas esse pensamento de Lucas nos Atos encontra ressonância em Gálatas 1,14: "Eu superava no judaísmo a maior parte dos compatriotas de minha idade, e procurava seguir com todo o zelo as tradições dos antepassados". 

 

 6. Paulo e Jesus

Uma pergunta que se faz é se Paulo estava em Jerusalém quando Jesus foi morto (ano 30, segundo alguns, 33 de acordo com outros). E tudo leva a crer que sim. Não há, contudo, nenhum texto que fale de um possível encontro entre Jesus e Paulo. Suas cartas são muito pobres em relação a esse aspecto. Pode-se recordar duas passagens da segunda carta aos Coríntios: "Mesmo que tenhamos conhecido Cristo segundo as aparências, agora já não o conhecemos assim" (5,16b; veja também 12,1-6). O segundo texto citado (12,1-6) certamente não fala de um contato pessoal de Paulo com Jesus de Nazaré. Trata-se de outra experiência. No primeiro texto, Paulo poderia simplesmente estar citando os que se gabavam de ter estado em contato direto com Jesus antes de sua morte. 

 

Provavelmente Paulo estava em Jerusalém nos dias da paixão, morte e ressurreição de Jesus, sem ter conhecimento ou consciência da importância desse fato para ele e para todos os que, mais tarde, receberiam sua mensagem. 

 

Vale a pena, nesse ponto, chamar a atenção para um detalhe, ao qual voltaremos mais adiante. Trata-se da diferença enorme entre o pequeno espaço geográfico em que Jesus se movimenta (basicamente a Palestina) e as imensas regiões percorridas por Paulo na sua ação evangelizadora, atingindo quase a metade do império romano.

 

De acordo com os evangelhos sinóticos, Jesus anunciou o Reino praticamente só na Galiléia, indo a Jerusalém para a Páscoa, ocasião em que foi morto e ressuscitou. Paulo, ao contrário, percorreu boa parte do império romano. Parece caber bem aqui o que Jesus afirma em João 14,12: "Eu garanto a vocês: quem acredita em mim, fará as obras que eu faço, e fará maiores do que estas, porque eu vou para o Pai". 

 

Outro detalhe importante é olhar o modo como cada um se comunica. Jesus fala aramaico e anuncia o Reino em parábolas, criadas a partir da observação atenta da vida simples do povo da roça e das aldeias. Paulo, ao contrário, sabendo falar o aramaico, fala e escreve em grego, pois seus ouvintes são judeus da diáspora e pagãos que falam a língua internacional daquele tempo. Paulo também é fino observador do cotidiano, mas as imagens usadas nas cartas vêm sobretudo da cultura urbana, da grande cidade. É assim que fala do atletismo, da construção civil, das paradas militares, das lutas nos estádios, da vida dos soldados etc. Ao ler as cartas de Paulo percebemos logo o esforço que fez para inculturar a mensagem do mais famoso habitante das aldeias da Galiléia, Jesus de Nazaré.

 

 7. Paulo e o Sinédrio

Sinédrio ou Conselho era o supremo tribunal da época de Jesus e depois dele (até o ano 70). Presidido pelo Sumo Sacerdote, concentrava praticamente todo o poder para o povo judeu. Era, evidentemente, um poder subordinado aos dominadores romanos, que impunham o sumo sacerdócio a quem fosse fiel ao sistema de dominação. 

 

O Sinédrio é o principal responsável pela morte de Jesus. Reunia cerca de setenta membros, entre os quais estava a elite sacerdotal (chefes dos sacerdotes), a elite leiga ("anciãos", latifundiários e donos do comércio em Jerusalém), além de doutores da Lei (poder judiciário), fariseus. Em poucas palavras, a elite dos poderosos. Alguns estudos levantam questões a respeito da participação de Paulo nesse Conselho. E o fazem a partir da expressão "dei meu voto", encontrada em Atos 26,10. Paulo está contando seu passado e sua conversão ao rei Agripa. Diz: "E foi isso que eu fiz em Jerusalém: prendi muitos cristãos com autorização dos chefes dos sacerdotes, e dei o meu voto para que fossem condenados à morte". Sabe-se que somente os membros do Sinédrio é que podiam votar. Se levarmos ao pé da letra essa passagem, Paulo teria pertencido ao Sinédrio. Mas para afirmar isso é preciso responder a outras questões. Em primeiro lugar, a idade de Paulo. Exigia-se, para ser rabino, um mínimo de trinta anos de idade. A mesma regra parecia valer para ser membro do Sinédrio. Teria Paulo mais de trinta anos quando começou a perseguir os cristãos? Talvez. Os Atos, contudo, afirmam que, por ocasião da lapidação de Estêvão; era ainda ''jovem'' (7,58). Apesar de consentir com a execução de Estêvão (8,1), Saulo ainda não tinha idade para fazê-lo. O autor dos Atos, no entanto, concentra acontecimentos, como se tudo o que aí se diz tivesse acontecido no espaço de poucos meses. Na verdade, trata-se de vários anos. 

 

Outro detalhe que inquieta está em Atos 23,1-10. Se Paulo de fato tivesse pertencido ao Sinédrio, uns vinte e cinco anos antes, como não saberia que quem preside o Conselho é o Sumo Sacerdote? Mesmo não o conhecendo pessoalmente, certamente poderia intuí-lo por causa do lugar central ocupado pela presidência e por suas características externas. Seria pura ironia do autor de Atos? De acordo com esse livro, certamente havia alguma ligação entre Paulo e o Sinédrio. 

 

 8. Paulo e o império romano

O autor de Atos dos Apóstolos não deixa dúvidas a respeito de Paulo ter sido cidadão romano. Dois textos são bem claros: 16,37 e 22,25-29. Todavia, tendo presente que Lucas não é fiel intérprete de Paulo e de suas ações, convém perguntar se de fato Paulo tinha esse título "de nascença" (22,29), como se o tivesse recebido do próprio pai.

 

Sabe-se que Lucas, nos Atos, procura mostrar uma imagem positiva do império romano e suas autoridades. Na visão dele, o Direito Romano era respeitado e seguido em todo o império. Contudo, sabe-se que isso não condiz com a verdade. Lucas mostra Paulo e o império romano quase em perfeita sintonia, pois tem um objetivo: apresentar o cristianismo nascente como algo simpático aos olhos dos donos do mundo. E por isso traça um perfil de Paulo sintonizado com o império, e mostra as autoridades romanas respeitando o Direito diante de seus cidadãos. 

 

O título de cidadão romano abria muitas portas e facilitava as coisas para quem tivesse de se deslocar constantemente de um lado para outro, como fazia Paulo. E impedia às vezes que o portador desse título caísse nas mãos de autoridades inescrupulosas, tornando-se vítima de abusos e violências. Parece que isso não aconteceu com Paulo. De fato, fala das perseguições e perigos incríveis pelos quais passou (veja, por exemplo, 2 Coríntios 11,2229). A maioria dos conflitos enfrentados nesse texto vêm dos irmãos de raça. Mas é lícito perguntar: o título de cidadão romano não teria sido de alguma forma útil nesses casos de açoites e flagelações? 

 

Nos seus escritos Paulo nunca fala desse título. Aliás, quando se refere ao tema "cidadania", desloca seu pensamento da terra para o céu, como se desprezasse a posse desse título: "A nossa cidadania, porém, está nos céus, de onde esperamos ansiosamente o Senhor Jesus Cristo como Salvador" (Filipenses 3,20). 

 

Alguns estudiosos dão crédito a Lucas e procuram nos textos de Paulo alguma possível justificativa disso. Encontram-na carta aos Filipenses. Como se sabe, trata-se de carta do cativeiro. Paulo está na prisão (1,13), mas tem certeza de que vai ser solto e poderá prosseguir sua atividade evangelizadora (1,25-26). De onde tira essa certeza, como se, apesar de preso, fosse senhor do próprio futuro? A resposta que esses estudiosos dão é que Paulo até esse momento não teria dado a conhecer seu título de cidadão romano (veja, nesta série, "Como ler a carta aos Filipenses"). O título de cidadão romano seria, pois, uma espécie de trunfo que Paulo reservaria para o fim, como último recurso. Mas também a isso podes e opor uma pergunta: Se ele, desejava tanto estar livre e poder evangelizar, por que retardaria a apresentação desse título, prolongando sua prisão? Pode-se perguntar, ainda, se o recurso ao título de cidadão romano fosse o único motivo de Paulo acreditar em sua próxima saída da cadeia.

 

Portanto, apesar de Lucas garantir com certeza que Paulo era cidadão romano desde o nascimento, pode-se questionar seriamente o fato. E entende-se melhor os sofrimentos de Paulo sem esse título do que com ele.

 

 8. Homem de várias culturas

Para os padrões daquele tempo, Paulo era um homem "internacional", conhecedor de várias culturas, bem preparado intelectualmente para a missão que Deus lhe reservou "antes de nascer" (Gálatas 1,15). Misteriosamente Deus o foi conduzindo e formando para o grande objetivo de ser "doutor das nações" (1Timóteo 2,7). Conhecia várias línguas: aramaico, hebraico, grego e, talvez, Latim. Sendo hebreu e filho de hebreus (Filipenses 3,5), conhece profundamente a cultura, a fé e as tradições do seu povo. Mas conhece e reconhece também os valores culturais dos não-judeus, com os quais convive desde seu nascimento. Comunica se oralmente e por escrito na língua internacional daquele tempo, o grego.

 

Atento ao modo como aconteciam as relações na sociedade da época, descobre aí uma força extraordinária para a evangelização. De fato, observando como se davam as comunicações entre cidades, o bom sistema de correios implantado pelo império romano, não receia copiar as ideias e transformá-las em instrumento de evangelização. Não devemos esquecer que ele foi o primeiro escritor do Novo Testamento. Quando a pregação do Evangelho era unicamente oral, ele inspirou-se nas cartas que se escreviam então para evangelizar com textos escritos. Torna-se, assim, sem saber e sem querer, o primeiro grande escritor do Novo Testamento. Jesus não deixou nada escrito, Paulo sim. 

 

Já se falou acima de como Paulo entrou em contato com o mundo cultural grego para iluminar essa cultura com a luz do Evangelho. Conhecia bem os filósofos de sua época, seus argumentos e pontos de vista. Superou o medo do confronto entre culturas, não se igualando a muitos de seus irmãos de raça, para os quais os outros eram totalmente estranhos, impuros, perdidos e condenados por Deus. Esse lento amadurecimento provocou a abertura para o mundo sem medo, com vontade de dialogar e de se encontrar.

 

Teve, certamente, dificuldades nesse sentido. Na carta aos Gálatas diz: "Gálatas insensatos! Quem foi que os enfeitiçou? Vocês tiveram diante dos olhos uma descrição clara de Jesus crucificado" (3,1), Por trás da palavra "descrição" alguns estudiosos veem a possibilidade de Paulo ter-se comunicado visualmente com os gálatas, dada a impossibilidade de falar claramente a eles por desconhecer seu dialeto. Ele teria se comunicado com desenhos de Jesus crucificado.

 

Muitos estudiosos sustentam que os hinos das cartas de Paulo (por exemplo 1Coríntios 13; Filipenses 2,5-11 etc.) são textos que existiam antes das cartas. Pode ser. Mas é oportuno perguntar o que teria feito Paulo nas comunidades em que se deteve por algum tempo (de acordo com Atos 18,11, ele ficou um ano e meio em Corinto por ocasião da fundação da comunidade), o que teria ensinado, como teria celebrado com os irmãos a fé que professavam em comum etc. Além disso, os hinos encontrados nas cartas de Paulo (tanto nas autênticas quanto nas deuteropaulinas) encaixam-se perfeitamente no conjunto das cartas, que é lícito perguntar se não foram escritos pelo próprio Paulo ou pelo menos com sua colaboração. Teria ele dotes poéticos? Provavelmente sim. 

 

 8. Condição social de Paulo

Os Atos dos Apóstolos o apresentam como alguém de condição social média. A cidadania romana e a possibilidade de se formar na escola de Gamaliel apontam para alguém que deve ter nascido numa família que tinha alguns recursos econômicos. Não se sabe se, quando foi a Jerusalém estudar, tenha ido com toda a família. Os Atos afirmam que mais tarde, quando foi preso nessa cidade, tinha uma irmã e um sobrinho morando aí (23,16). 

 

De acordo com os Atos (18,3), Paulo aprendeu e exerceu a profissão de fabricante de tendas. Em Corinto trabalhou com o casal Áquila e Priscila. Os motivos dessa parceria parecem óbvios, mas se pode suspeitar de que Paulo, nessa ocasião, não tivesse recursos suficientes para comprar ou alugar um espaço para suas atividades profissionais. Mais tarde, escrevendo aos coríntios, afirma não ter morada fixa (1Coríntios 4,11). 

 

Uma coisa, contudo, é certa. Paulo não adota o modo de ser da cultura grega, que considerava o trabalho manual como coisa de escravo. Pelo contrário, seguiu o exemplo de seu professor Gamaliel. De fato, também os grandes e famosos mestres de Israel costumavam trabalhar com as próprias mãos. Nesse ponto Paulo e Atos estão de acordo (veja Atos 18,1-3; 20,34; 1Tessalonicenses 2,9; 4,11; 1Coríntios 4,12). 

 

Na cultura judaica, de modo geral, não há nenhuma prevenção contra o trabalhador e o trabalho. Até mesmo os ricos tinham de trabalhar. São famosas as sentenças dos livros sapienciais contra o preguiçoso e indolente. Esses provérbios, nascidos ao longo dos séculos, sedimentam a secular experiência de Israel em relação ao trabalho. Paulo não encontrou dificuldades em aprender (talvez com o pai) a profissão da qual tiraria depois o próprio sustento. Não deve ter feito corpo mole diante das dificuldades da vida de trabalhador. 

 

Bem diferente era a visão dessa questão na cultura grega dessa época. Para as elites, abastecidas de bens e culturalmente favorecidas, o único trabalho que dignificava o ser humano era o intelectual. Para muitos, não ter de trabalhar era sinal de realização pessoal e de projeção social. Mas ninguém se perguntava como é que essas elites se mantinham. E nós sabemos que, por trás de qualquer privilégio das elites, há sempre um grupo de desfavorecidos que, graças ao seu trabalho, sustenta a elite. Imaginemos a casa de um nobre nos tempos de Paulo. Funcionava graças a um quadro de servos domésticos (e também rurais) que davam tudo de si em troca de um lugar para dormir e um prato de comida. Imaginemos, agora, como seria o trabalho missionário de Paulo, se empregasse esses padrões de comportamento em suas viagens de evangelização. Certamente o acompanhariam escravos prontos a sustentá-lo em tudo. Como, pois, anunciaria o primado da liberdade (Gálatas 5,1), servido pelos que, na prática, mantinha como escravos?

 

Movendo-se num contexto de cultura grega, Paulo "perdeu" status, igualando-se com seu trabalho manual aos escravos, que constituíam até dois terços da população em certas metrópoles do império romano. Seu lugar social é o dos trabalhadores empobrecidos, embora pudesse fazer valer seus direitos de apóstolo e de fundador de comunidades (1 Coríntios 9,1-18; 2 Coríntios 11,7-12).

 

 9. Estado civil

Normalmente afirma-se que Paulo era solteiro. Todavia, vale a pena olhar de perto essa questão. Em primeiro lugar, é preciso ter presente que, sem dúvida alguma, sua conversão se deu depois dos trinta anos de idade. Além disso, deve-se recordar um princípio bastante comum entre os judeus daquele tempo, ou seja, que os rapazes normalmente casavam cedo: A idade mínima legal para o casamento dos rapazes era de 13 anos. Na realidade só se casavam por volta dos 18 anos. Para as moças, a idade mínima era 12 anos. O Antigo Testamento desconhece aquilo que corresponde hoje ao celibato sacerdotal. Por quê? A razão é muito simples, e valia tanto para os rapazes quanto para as moças. 

 

O povo de Deus do Antigo Testamento dependia de uma raça. Para ser plenamente membro de Israel era necessário ter sangue judeu. Esse princípio conduz logo a uma conclusão: para que o povo de Deus cresça numericamente é preciso fazer filhos. Por isso estimulava-se a procriação. O rapaz que adiasse a decisão de casar atraía sobre si suspeitas.  As cartas de Paulo não são decisivas nesse ponto. Há um texto da primeira carta aos Coríntios do qual se poderia deduzir que Paulo fosse casado. Defendendo-se contra os que o acusam de não ser apóstolo, ele chama a atenção para o modo como Pedro e os outros apóstolos agem, ou seja, levando consigo nas viagens uma mulher (ou esposa) cristã: "Não temos o direito de levar conosco nas viagens uma mulher cristã, como fazem os outros apóstolos e os irmãos do Senhor, e Pedro?" (9,6). Note-se que a expressão grega "mulher cristã" pode ser traduzida por "esposa cristã". Em base a esse versículo, algumas pessoas sustentam que Paulo poderia ser homem casado e que teria levado à radicalidade o projeto de não pesar economicamente sobre as comunidades por ele fundadas.

 

Nessa mesma carta, porém, temos outra frase que faz pensar em Paulo solteiro ou até viúvo. Ele afirma: "Aos solteiros e às viúvas, digo que seria melhor que ficassem como eu" (7,8). A expressão "como eu" dá a entender que Paulo não está ligado em casamento a outra pessoa. Mas não fica claro se era solteiro ou viúvo. De qualquer forma, e acima dessas hipóteses, é oportuno recordar que Paulo se comportará como mãe e pai para todos os que, por meio dele, chegam à fé em Jesus Cristo (1Tessalonicenses 2,7b-12; 1Coríntios 4,15; Gálatas 4,19; Filipenses 2,22; Filemon 10). 

 

 10. Fontes para conhecer Paulo

A melhor fonte para conhecer Paulo são as cartas que escreveu, sobretudo as autênticas (disso se falará adiante). Há outras fontes importantes, como os Atos dos Apóstolos e todos os estudos sobre a situação política, social econômica etc. daqueles lugares e daquela época. 

 

A relação Paulo e Atos dos Apóstolos é bastante delicada. Há estudiosos que simplesmente ignoram as informações de Lucas e tentam reconstituir sua vida e ações sem contar com o livro dos Atos. Por quê? Acima já foi dito algo a esse respeito. Cresce sempre mais entre os estudiosos a convicção de que o livro dos Atos não é plenamente confiável nas informações a respeito de Paulo. Lucas não está interessado nos fatos brutos da vida desse apóstolo. Pelo contrário, constrói, com a ajuda de episódios de Paulo, uma espécie de "teologia da história", usando os acontecimentos do jeito que lhe chegaram aos ouvidos ou do jeito que ele os interpreta. Além disso, é importante ter presente que a pessoa de Paulo não teve boa aceitação por parte de todos os grupos cristãos da segunda metade do primeiro século depois de Cristo. O livro dos Atos dos Apóstolos, escrito uns quinze anos depois da morte de Paulo, parece inserir-se no esforço de pessoas e grupos em resgatar todo o trabalho evangelizador de Paulo. De fato, ele aparece, a partir da segunda metade do livro, como o modelo de evangelizador e como tipo de discípulo capaz de reproduzir, em outros lugares e tempos, as palavras e ações de Jesus. Esse é, em poucas palavras, o objetivo de Lucas em relação a Paulo nos Atos dos Apóstolos. 

 

É por isso que alguns estudiosos da vida de Paulo dispensam totalmente as informações dadas por Lucas em Atos. Assim fazendo, contudo, não se consegue preencher todos os dados referentes a Paulo, sobretudo as viagens. O que fazer, então? Muitos estudiosos seguem um caminho de conciliação, ou seja, tomam as informações de Lucas com cautela, sabendo que podem ter sido modificadas pelo autor dos Atos, que tinha outros planos. 

 

Os que defendem os Atos dos Apóstolos como fonte segura a respeito de Paulo citam a possibilidade de Lucas ter sido companheiro dele a partir da segunda viagem. De fato, em Atos 16,10 acontece algo inusitado do ponto de vista narrativo. De repente, Lucas deixa de narrar os fatos como se fosse alguém distante e passa a relatá-los na primeira pessoa do plural, como se, a partir daquele momento e lugar, fizesse parte da equipe missionária de Paulo: "Depois dessa visão, procuramos partir para a Macedônia, pois estávamos convencidos de que Deus acabava de nos chamar para anunciar aí a Boa Notícia". Daqui para a frente os fatos são narrados ora como se Lucas fizesse parte do grupo, ora como se não pertences- se a ele. Alguns estudiosos afirmam que, quando usa o "nós", Lucas estaria citando um texto que existia anteriormente. De fato, no começo de sua obra afirma ter feito pesquisas (Lucas 1,1-4). 

 

Mesmo que Lucas tenha sido companheiro de viagem de Paulo, isso não nos obriga a aceitar sem mais os dados fornecidos pelos Atos dos Apóstolos. Isso se torna evidente a partir do confronto de informações. Em outras palavras, suponhamos que Paulo e Lucas tenham versões diferentes do mesmo fato. Pergunta-se então: Nesse caso, em quem acreditar? Quem está sendo fiel aos acontecimentos? E a resposta parece ser uma só. Quando temos duas versões do mesmo fato, é necessário dar crédito a Paulo e supor que Lucas tivesse outros motivos para contar diferentemente o mesmo fato. Vamos dar dois exemplos. 

 

Comparemos Atos 17,17 e 18,5 com 1Tessalonicenses 3,1-2a.6a. Lucas afirma: "Enquanto Paulo os esperava em Atenas, ficou revoltado ao ver a cidade cheia de ídolos. Quando Silas e Timóteo chegaram da Macedônia, Paulo se dedicou inteiramente à Palavra, testemunhando diante dos judeus que Jesus era o Messias". Paulo, contudo, tem outra versão: "Assim, não mais podendo aguentar, resolvemos ficar sozinhos em Atenas, e enviamos a vocês Timóteo. Agora, Timóteo acaba de chegar da visita que fez a vocês, trazendo boas notícias sobre a fé e o amor de vocês". A comparação mostra claramente a diferença. De acordo com os Atos, Paulo estava sozinho em Atenas. Quando os dois companheiros chegam, Paulo já está em Corinto. De acordo com a primeira carta aos Tessalonicenses, Paulo e Silas ficam sozinhos em Atenas e Timóteo vai e volta sozinho de Tessalônica. Evidentemente deve-se dar crédito à versão de Paulo. 

 

O segundo exemplo parte de 2 Coríntios 11,24-25, em que Paulo afirma: "dos judeus recebi cinco vezes os quarenta golpes menos um. Fui flagelado três vezes; uma vez fui apedrejado; três vezes naufraguei; passei um dia e uma noite em alto-mar". Olhando para o que Lucas diz de Paulo nos Atos, podemos perguntar: Onde estão as referências às cinco vezes em que Paulo afirma ter sido punido com as 39 pauladas? Lucas ignora completamente as 195 bastonadas que Paulo recebeu. E onde os Atos falam das três flagelações? Lucas contenta-se em narrar uma (Atos 16,22-23), omitindo as demais. Por quê? Certamente porque em seus planos, como veremos adiante, bastava mostrar uma flagelação. 

 

Paulo afirma ter naufragado três vezes. Onde se encontra isso em Atos? Em lugar nenhum. Lucas contenta-se em narrar o grande naufrágio da quarta viagem (na qual talvez estivesse presente). Mas não devemos esquecer que, quando Paulo escreve essas coisas, ainda estamos na terceira viagem. E, além disso, Paulo garante ter passado 24 horas em alto mar. 

 

Nunca chegaremos a ter notícias desses graves problemas enfrentados por Paulo. Mas uma coisa é certa: a vida e a obra dele são muito mais do que sabemos pelos Atos.

 

Os exemplos poderiam continuar. Mas do que foi dito tira-se uma conclusão clara: Lucas não é intérprete fiel de Paulo, no sentido de oferecer uma visão ampla de tudo o que aconteceu na vida desse apóstolo. O inverso, talvez, possa ser verdadeiro; o seja, Paulo é, para Lucas, a figura ideal para representar o caminho do discípulo na história, caminho feito de testemunhos em meio aos conflitos. No seu evangelho, Lucas mostrou o caminho de Jesus; nos Atos mostra, na pessoa de Paulo, o caminho do discípulo, que não é diferente do caminho do Mestre. Para apresentar isso, Lucas serve-se de alguns (não todos) fatos marcantes na vida de Paulo, apresentando-os a seu modo e segundo sua visão.

 

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