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6ª Lição 3,1-24 - O ser humano deseja..
6ª Lição 3,1-24 - O ser humano deseja..

Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal. (3,5) 

 

1.Acolhida e motivando a aula de hoje. Queridos amigos e amigas que estão acompanhando esse estudo do Genesis. Na aula de hoje, iremos estudar o capítulo 3 que fala sobre Adão e Eva, o primeiro casal humano. Este é um capítulo muito conhecido por todos nós. Poder-se-ia dizer que de tão lidas e conhecidas se cristalizou um significado que se vai fazendo consensual. Porém no nosso estudo iremos analisar o texto dentro do seu contexto e isso nos trará muitas descobertas e novidades.

 

A primeira é que Adão e Eva tiveram que enfrentam uma escolha difícil. De um lado, eles têm a segurança e o conforto do jardim do Éden. Do outro lado, o mundo desconhecido, fascinante e amedrontador. No jardim, tudo está controlado e bem regado. Lá fora, vai ser preciso trabalhar muito para pôr ordem nas coisas e dar qualidade à vida. Que escolha fazer? Ficar quietos ou se aventurar? Permanecer no jardim desenhado e protegido por Deus ou assumir a responsabilidade de construir seu próprio jardim, correndo o risco de enveredar por caminhos errados? 

 

As comunidades judaicas que criaram essa história estavam vivendo um momento importante. Depois de terem morado por muito tempo, como exilados e migrantes, nos jardins do imperador da Pérsia, agora queriam construir seu próprio espaço de vida, seu país. Queriam se arriscar fora do jardim, numa terra dura e entre muitos inimigos. Sonhavam criar uma cidade, talvez Jerusalém, ou uma nação livre e rica com melhores condições de vida. Este é o projeto que foi narrado no capítulo 3 do Genesis, usando uma linguagem cheia de símbolos e que iremos estudar agora.  Na aula de hoje iremos investigar o que pode estar por trás desse relato.   

 

2. Introdução: A autossuficiência e a ambição que existem no ser humano impedem que o projeto de Deus se realize. Vejamos o mito tupi-guarani de Yara e fiquemos atentos/as para perceber como a autossuficiência é destrutiva.

 

Era uma vez, uma linda morena cor de jambo, muito bela, com traços finos e elegantes. Seu nome era Yara. Ela vivia passeando pelas praias do Amazonas. Gostava de tomar banho nos igarapés de águas claras e tranquilas. Uma mulher que amava a liberdade. 

 

Certo dia, quase noite, Yara estava se divertindo nas águas corredias do igarapé. Ouviu vozes de pessoas que estavam se aproximando. Eram os homens brancos. Falavam uma língua estranha, com tom agressivo. Calçavam botas pesadas e roupas rudes. Seus olhares eram de cobiça. Semelhantes a animais famintos.  

 

Yara pressentiu e tentou fugir. Mas foi agarrada por mãos fortes. Eram muitas. Com violência foi jogada ao chão e estuprada até a morte e depois jogada no rio. O Espírito das águas teve pena de Yara. Acolheu o seu corpo machucado. Devolveu-lhe a vida e toda a sua beleza. Ela foi transformada em sereia para nunca mais ser violada. 1 

 

A imagem de Yara representa as vítimas massacradas pelos dominadores de ontem e hoje. Atualmente presenciamos muitas formas de violência. Quem domina o outro age com autossuficiência, desrespeitando os direitos de seus semelhantes. Quais são as principais causas da violência hoje?  

 

3. Iluminando a vida. O trabalho suado, a dominação de um sexo sobre o outro e o sofrimento e o perigo da mulher ao dar à luz fazem parte do dia-a-dia das pessoas. Mas, para o povo de Israel, o mal e o sofrimento não são vontade de Deus, mas consequência da desobediência humana. O projeto de Deus é que haja integração entre todos os seres criados. 

 

a) Como superar a tendência à autossuficiência e ao individualismo presentes em nossa vida e em nossa comunidade? 

 

b) Qual o nosso compromisso diante da realidade de violência, desemprego, subemprego concentração de terras, falta de moradia, miséria, fome, criminalidade e de tantas outras formas de desrespeito à vida humana? 

 

4- Introdução ao texto. O relato de Gênesis 3 é uma tentativa de explicar a origem do mal. De acordo com essa tradição do povo judeu, a pretensão de ser como Deus está na raiz de todos os males. Agindo de maneira autossuficiente, o ser humano se distancia do projeto de Deus. A ganância e a ambição humanas produzem escravidão e morte. A árvore do conhecimento pode estar relacionada com a arte de organizar a sociedade em favor da felicidade do povo (1Rs 3,7-9). Porém, o que existe são relações de dominação, opressão e exploração, gerando pobreza e miséria para a maioria das pessoas. O relato de Gênesis 3,1-24 quer desmascarar os mecanismos que oprimem o povo, simbolizados pela serpente. Este símbolo pode indicar a inclinação para o mal e a injustiça que há no ser humano; ou a forma de governar dos faraós do Egito, pois eles trazem na cabeça o símbolo da deusa serpente; ou ainda a religião de Canaã, cujos cultos de fertilidade ê renovação da vida são apropriados por governantes ambiciosos. Leia agora com atenção o texto do livro do Gênesis.  

 

Leitura do texto: Gn 2,25 e 3,1-24

a) Quais os símbolos que aparecem no texto?

b) Como acontece o diálogo entre a serpente e a mulher?

c) Como é o relacionamento entre Javé Deus, o homem e a mulher depois da transgressão?

 

5 -Situando o texto no contexto. Em muitas culturas, a serpente desempenha um papel importante. O Antigo Egito conhece várias deusas-serpentes. São seres representados de várias maneiras. Uma dentre as deusas-serpentes é vista como a encarnação do olho do deus sol. Conforme a descrição do mito egípcio, a serpente fica empinada na testa do deus sol e o seu hálito tem a força de destruir os inimigos. O principal inimigo do deus sol e da ordem do mundo é Apófis, que também tem a forma de uma serpente.  

 

Na mitologia em geral, a serpente é a deusa que organiza a vida, a sabedoria, a prosperidade, a fertilidade e a cura. Ela é um símbolo ambíguo, pois concentra forças opostas: ela é um símbolo de morte, por causa de seu veneno, mas, ao mesmo tempo, aparece como animal que se regenera constantemente, por isso está ligada à ideia de renascimento e ressurreição.  

 

A interpretação do simbolismo da serpente depende da cultura. Em alguns povos existe um verdadeiro fascínio pelas serpentes. Os antigos gregos criavam serpentes como animais de estimação e proteção. Na Mesopotâmia e no Egito, a serpente é símbolo da juventude, da sabedoria e do caos. O simbolismo da eterna juventude está ligado ao fato de a serpente trocar de pele a cada período.  

 

No Antigo Oriente Próximo, a serpente é símbolo da sexualidade masculina. Mas, às vezes, também aparece como símbolo da sexualidade feminina. A presença de serpentes em áreas cultivadas é muito benéfica, pois elas acabam com os animais roedores. São protetoras da vida. Há muitas serpentes venenosas que destroem a vida, mas, em geral, as pessoas da roça sabem distingui-las. São pessoas portadoras de um conhecimento vital.  

 

Existe uma íntima ligação entre a serpente e a árvore sagrada. Uma imagem que aparece num antigo selo da Mesopotâmia, por volta de 1500 a.C., traz no centro uma árvore sagrada com duas imagens: à direita, uma deusa com coroa e chifres e, à esquerda, uma serpente.  

 

O que significa a serpente para o povo judeu? Nas tradições do povo judeu, diante da desobediência dos israelitas, Deus manda serpentes aladas venenosas. E para neutralizar os efeitos do castigo, Deus manda Moisés fazer uma serpente de bronze: quem fosse picado pelas serpentes venenosas bastava olhar para a serpente de bronze (Nn 21,4-9). A serpente é uma divindade da cura, tanto que até hoje ela é o símbolo da medicina. A serpente é um símbolo de morte e de vida. Mais tarde, ela é interpretada e descrita como um perigo para a vida (Sl 91,13), inclusive é relacionada com o diabo (Sb 2,24). 

 

O relato de Gênesis 3 descreve a serpente como um ser em oposição a Deus. Ela levanta suspeita sobre as intenções de Deus a respeito da proibição de comer os frutos da árvore da vida. O que pode estar por trás desse relato?  

 

- Alguns veem no relato de Gênesis 3 uma crítica à política de Salomão, que se casou com a filha do faraó (1Rs 11,1), assumindo um governo espelhado na monarquia egípcia. Na tiara do faraó do Egito havia o símbolo da serpente, que representava a sua divindade e o seu poder.  

 

- Na religião de Canaã, havia um deus chamado Baal, deus da chuva e da fertilidade, representado por uma serpente. A serpente é sinal da fecundidade e da renovação da vida. Uma das histórias do povo cananeu conta o seguinte: Mot, a divindade da morte e da esterilidade, mata Baal. Anat, irmã e esposa de Baal, mata o deus Mot, fazendo Baal retomar à vida. Este ciclo se repete todos os anos. Isso explica o período das secas, quando Baal está morto, e o período das chuvas, quando Baal retorna à vida e se encontra com Anat.  

 

- As divindades Baal e Anat são muito cultuadas no antigo Israel, pois elas garantem chuva, colheitas abundantes e fecundidade aos animais. De um lado, existe a crença na deusa serpente que garante a fertilidade, de outro, há o Estado que se apropria da religião do povo, utilizando-o para aumentar a produção e a reprodução.  A presença da serpente de bronze como objeto do culto é colocada até no templo de Jerusalém (2Rs 18,4). Portanto, quem aceita os cultos promovidos pelo Estado acaba arruinando a sua própria vida.  

 

- A serpente de Baal, de acordo com os textos de Ugarit, possui astúcia e sabedoria. É possível que, por trás da figura da serpente do relato bíblico, esteja a polêmica contra Baal, os cultos ligados a ele e a religião do povo apropriada pelo Estado. De acordo com Gênesis 3, a serpente não é uma divindade, mas apenas uma criatura de Deus. A preocupação do autor é desmascarar os mecanismos políticos e religiosos que oprimem o povo. Acompanhemos, passo a passo, a ação da serpente no relato de Gênesis 3.  

 

6- Comentando o texto: Gn 2,25-3,24. "Os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam" (2,25). O último versículo do capítulo 2 tem a função de introduzir o capítulo 3. A situação é de paz, harmonia e integração. A entrada da serpente irá provocar mudanças. Ela é descrita como o animal mais astuto que Javé Deus havia feito. De maneira ambígua, a serpente, numa aparente atitude de aliada, inicia o diálogo: "Então Deus disse: 'Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?" (3,1).  

 

A mulher e a serpente discutem o contrato entre Deus e Adão. Conforme a narrativa, o acordo foi feito antes de Eva ter sido criada. Eva corrige a serpente que tinha sido exagerada ao falar da proibição de Deus: "Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: 'Dele não comereis'" (3,3). Ao repetir o contrato, a mulher também exagera, pois ela não especifica se é a árvore da vida ou do conhecimento do bem e do mal (2,9). E ainda acrescenta "nele não tocareis sob pena de morte". Por que a mulher acrescenta a proibição de não tocar? Será que é o fato de quanto mais próximo estiver, maior a tentação?  

 

A serpente prontamente responde: "Não, não morrereis!". Em seguida, revela as intenções ocultas de Deus: "Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal" (3,5). A serpente se mostra mais conhecedora de Deus do que o homem e a mulher, Ela mostra que Deus é egoísta e falso ao querer impedir que o ser humano se torne como os deuses. É interessante notar que não há um convite explícito à desobediência; a serpente apenas dá a entender, e isso é suficiente. Tendo cumprido o seu papel, a serpente sai de cena. No cenário, permanece a mulher e a árvore do fruto proibido.  

 

Diante da dúvida, Eva dá razão à serpente: a árvore é boa, formosa e desejável (3,6). A mulher não vê o perigo. Ela pensa poder encontrar no fruto proibido tudo o que precisa: liberdade e imortalidade. A mulher esquece totalmente a proibição divina, e nos seus ouvidos ressoam apenas as palavras da serpente. Então, "Tomou-lhe o fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu" (3,6). Imediatamente eles observam as consequências: constatam que estão nus. Quando o ser humano se comporta como Deus, fazendo tudo o que deseja, sem respeita!" os limites, ele fica só, Dão se relaciona nem com Deus, nem com os seres vivos, nem com a natureza.  

 

Nova cena se abre: Deus passeia no jardim ao cair da tarde. Existe familiaridade e proximidade entre Deus e os humanos. Porém, o medo provoca a ruptura e o distanciamento de Deus: "Onde estás?". Mulher e homem se escondem, mas apenas o homem responde: "tive medo porque estou nu, e me escondi" (3,10). Começa o processo de investigação. Deus interroga o homem e a mulher. Além do distanciamento, a segunda consequência é a acusação do homem contra a mulher (3,12). A terceira consequência, que aparece na resposta da mulher, é a destruição da harmonia entre os humanos, a terra e os animais (3,13). Ninguém assume suas responsabilidades: o homem acusa a mulher, que acusa a serpente. Deus não interroga a serpente; ela é amaldiçoada.  

 

O primeiro oráculo é contra a serpente: "És maldita entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida. Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar" (3,14-15). A mais sábia entre todos os animais, agora é maldita, derrotada e condenada a comer poeira, como símbolo da humilhação (Mq 7,17). Pode ser uma crítica contra o culto às divindades da fertilidade incentivadas pelo Estado (Nm 21,6-8). Na cena anterior, serpente e mulher aparecem como aliadas; agora, como inimigas de geração em geração.  

 

O segundo oráculo é contra a mulher: "Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará" (3,16). Dar à luz com dor e ser dominada pelo homem são realidades vivenciadas pelas mulheres, uma natural e a outra decorrente da cultura patriarcal, na qual o homem está no centro. Porém, o autor desse relato coloca essas duas realidades como castigo de Deus pela transgressão. Por um lado, o relato justifica o parto com sofrimento e a dominação masculina. Por outro, mostra que o fato de dar à luz com dor e da dominação sexual não fazem parte do plano original de Deus.  

 

O terceiro oráculo é contra Adão: "Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos  cardos e comerás a erva dos campos. Com o suor do teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó retomarás" (3,17-19). O castigo do homem é voltar à sua origem, a uma terra sem água, sem vida, que só produzirá espinhos e cardos. É ser condenado a uma vida sofrida, trabalhando de sol a sol. O homem não é amaldiçoado, mas, por causa do seu egoísmo, ele é obrigado a pesados trabalhos, e a terra se torna maldita. O seu maior castigo é a morte.  

 

É interessante observar que cada oráculo espelha o cotidiano das/os camponesas/és. Nos campos, o contato com cobras venenosas arrastando-se pelo chão era frequente. Dar à luz com dor representa a realidade das mulheres, muitas delas morriam durante o parto ou eram forçadas a ter mais filhos, por exigência do Estado (Gn 35,16-20; Os 4,4-14). As guerras e suas atrocidades atingiam ate as mulheres grávidas (Os 14,1). O trabalho duro, e muitas vezes improdutivo, não é nenhuma novidade. Na monarquia, as camponesas e os camponeses, ou mesmo seus filhos/as trabalham a serviço do Estado e não vêem os frutos do trabalho. A constante exploração da terra em vista do comércio a torna improdutiva aumentando ainda mais o sofrimento da população camponesa.  

 

Depois de Deus ter pronunciado os oráculos, o homem entra em cena e nomeia a sua mulher: Eva, mãe de todos os viventes. É um rasgo de esperança: apesar do pecado a humanidade sobreviverá. Em seguida, Javé Deus faz roupas de pele para o homem e a mulher.  Roupas que simbolizam proteção para a vida fora do jardim. Deus aceita a opção livre do ser humano e c acolhe como é. Por fim, eles são expulsos do jardim. O ser humano foi expulso para cultivar o solo de onde foi tirado. E ele deve transformar a terra seca em um jardim. Depois da expulsão do ser humano, "Deus colocou diante do jardim do Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida" (3,24). O acesso ao jardim não está completamente fechado. As portas continuam abertas - apenas há guardas vigiando a entrada. O desejo do paraíso perdido continua habitando no coração do ser humano e permanece acesa a chama da esperança de voltar a esse lugar utópico (cf. Is 65,17-25).  

 

7 - Aprofundando: Interpretação de Gênesis 2-3 a partir do século II a. C. Os relatos de Gênesis 1-11, especialmente a criação do universo e a história de Adão, Eva e a serpente, estão entre os textos bíblicos mais conhecidos e lidos. Desde a nossa infância, essas histórias são contadas e repetidas por nossas mães e pais, tias e tios e catequistas. Aprendemos que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou. Ouvimos as histórias sobre Adão, Eva e a serpente para explicar como o pecado entrou no mundo. E quantas vezes vimos pinturas ou desenhos mostrando a maçã como o fruto proibido...

 

O relato de Gênesis 2,4b a 3;24 tem o objetivo de explicar a origem do homem e da mulher, e como o mal entra no mundo criado por Deus. O autor usa imagens e símbolos próprios do seu tempo e de sua cultura, por exemplo, o barro, a serpente, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Por ser um relato simbólico, há muitas possibilidades de interpretações para esse texto, porém, a maioria reforça o papel da mulher como responsável pelo pecado da humanidade.  

 

O Primeiro Testamento, nas tradições mais antigas, não utiliza a história de Adão e Eva, a queda e a punição para justificar a realidade de destruição. Na visão de alguns profetas, o pecado é conseqüência da falta de conhecimento de Deus e das situações de injustiça provocadas pelas elites dirigentes (Os 4,1-3; Ez 28,11-19). A interpretação da história de Adão e Eva como pecado e queda se desenvolve somente a partir do século n a.C., período dominado pelos gregos. O livro de Jesus ben Sirac, conhecido com o nome de Eclesiástico, é desse período. A partir de sua sabedoria oficial, ele afirma: "Foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos" (Eclo 25,24).  

 

A partir da dominação do Império Grego no Oriente (333 a.Ci), Israel vive um processo de mudança de mentalidade. Nesse período, os relatos bíblicos mais antigos, especialmente aqueles nos quais as mulheres estão presentes, são reinterpretados, recebendo outro enfoque. De um lado, os relatos antigos são carregados com paixões perigosas; de outro, enfatizam a beleza como algo perigoso e exclusivo das mulheres. Esta mentalidade também está presente no livro da Sabedoria de Jesus ben Sirac: "Desvia teu olho de mulher formosa, não fites beleza alheia. Muitos se perderam por causa da beleza de mulher" (Eclo 9,8; 42,12-14).  

 

Os textos apócrifos que surgem nessa época apresentam uma interpretação muito negativa de alguns relatos do Antigo Testamento. No livro dos Jubileus há uma retomada tendenciosa da história de Adão e Eva: "Deus ficou com raiva da mulher" (3,23). O Primeiro Livro de Adão e Eva reforça o papel da mulher como a única responsável pela queda. Esse texto coloca na boca de Eva as seguintes palavras: "Fui eu quem provocou a queda de Vosso Servo, do jardim para esse lugar perdido; da luz para esta escuridão; e da morada da alegria para esta prisão" (Primeiro Livro de Adão e Eva, 5,5). Os nomes são entendidos como se fossem nomes de pessoas individuais. Mas, na forma original, Eva, havvah, mãe dos viventes, e Adão, 'adam, gênero humano, não são nomes próprios. 

 

No Testamento dos Doze Patriarcas, a instrução de Rúben é extremamente negativa em relação às mulheres. Eis o que ele diz: "Não olheis para a beleza das mulheres. As mulheres são maldosas, meus filhos; se não possuem nem força nem poder sobre o homem, procuram atraí-lo por meio de encantamentos, e, se não conseguem dobrá-lo por esse meio, pressionam-no com astúcias. Sobre elas falou-me o Anjo do Senhor, ensinando-me que as mulheres são mais sujeitas ao espírito da luxúria que os homens” (Testamento de Rúbens, 4,1;51)  

 

Na Primeira Epístola a Timóteo encontramos um texto fortemente influenciado por esse período, e não pelos relatos originais do Primeiro Testamento. Eis o que diz o texto: Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; mas que se ornem, ao contrário, com boas obras, como convém a mulheres que se professam piedosas. Durante a instrução, a mulher conserve o silêncio, com toda a submissão. Não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela sua matem idade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade (1Tm 2,9-15).  

 

Meu Deus, como o texto da Primeira Carta a Timóteo está distante de Gênesis 2-3! De acordo com o relato de Gênesis 3, a única que seduz é a serpente, que, na tradição cristã, foi demonizada. A serpente cresceu tanto que virou dragão (Ap 12,8). A transgressão é realizada pela mulher e pelo homem. A mulher será salva pela sua maternidade, portanto, induz a pensar que a transgressão foi de ordem sexual. O texto ainda enfatiza que a mulher, por causa do seu pecado, deve viver de maneira submissa e com modéstia.  

 

É sempre bom voltar aos relatos originais. Deus cria o 'adam. e ele só se toma homem na relação com a mulher. No mundo criado por Deus, mulher e homem são chamados a viver como uma só carne. O pecado não vem de Deus, mas do desejo de concentrar o poder nas próprias mãos, do desejo de ser como deus. Essa tentação continua presente, e é preciso sempre lutar contra ela. Nessa peleja, contamos com amor misericordioso de Deus. 

 

Texto: Gn 3, 9-15.20

AMBIENTE

O relato jahwista de Gn 2,4b-3,24 sobre as origens da vida e do pecado, é, de acordo com a maioria dos comentadores, um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante e vivo e parece ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma reportagem jornalística de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer nos dizer que na origem da vida e do homem está Jahwéh e que na origem do mal e do pecado estão as opções erradas do homem. Trata-se, portanto, de uma página de catequese.


Esta longa reflexão sobre as origens da vida e do mal que desfeia o mundo está estruturada num esquema tripartido, com duas situações claramente opostas e uma realidade central que aparece como charneira e ao redor da qual giram a primeira e a terceira parte…


1ª parte (cf. Gn 2,4b-25), o autor descreve a criação do paraíso e do homem; apresenta a criação de Deus como um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive em comunhão total com o criador e com as outras criaturas.


2ª parte (cf. Gn 3,1-7), o autor descreve o pecado do homem e da mulher; mostra como as opções erradas do homem introduziram na comunhão do homem com Deus e com o resto da criação fatores de desequilíbrio e de morte.


3ª parte (cf. Gn 3,8-24), o autor apresenta o homem e a mulher confrontados com o resultado das suas opções erradas e as consequências que daí advieram, quer para o homem, quer para o resto da criação.

Na perspetiva do catequista jahwista, Deus criou o homem para a felicidade… Então, pergunta ele, como é que hoje conhecemos o egoísmo, a injustiça, a violência que desfeiam o mundo? A resposta é: em algum momento na história humana, o homem que Deus criou livre e feliz fez escolhas erradas e introduziu na criação boa de Deus dinamismos de sofrimento e de morte.


O nosso texto pertence à terceira parte do tríptico. Os personagens intervenientes são Deus, que “passeia no jardim à brisa do dia” (vers. 8a), Adão e Eva, que se esconderam de Deus por entre o arvoredo do jardim (vers. 8b).

 

MENSAGEM

A nossa leitura começa com a “investigação” de Deus... Antes de proferir a sua acusação, Deus - o acusador e juiz - investiga, descobre e estabelece os fatos.


1ª pergunta feita por Deus ao homem: "onde estás?" A resposta do homem é já uma confissão da sua culpabilidade: "ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me" (vers. 9-10). A vergonha e o medo são sinal de uma perturbação interior, de uma rutura com a anterior situação de inocência, de harmonia, de serenidade e de paz. Como é que o homem chegou a esta situação? Evidentemente, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos contrários àqueles que Deus lhe havia proposto. A resposta do homem trai, portanto, o seu segredo e a sua culpa.


2ª segunda pergunta feita por Deus ao homem é meramente retórica: “terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?” (vers. 11). A árvore em causa, a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, significa o orgulho, a autossuficiência, o prescindir de Deus e das suas propostas, o querer decidir por si só o que é bem e o que é mal, o pôr-se a si próprio em lugar de Deus, o reivindicar autonomia total em relação ao criador. A situação do homem, perturbado e em rutura, é já uma resposta clara à pergunta de Deus... É evidente que o homem “comeu da árvore proibida”, isto é, escolheu um caminho de orgulho e de autossuficiência em relação a Deus. Daí a vergonha e o medo.


Ao defender-se, o homem acusa a mulher e, ao mesmo tempo, acusa veladamente o próprio Deus pela situação em que está: “a mulher que me destes por companheira, deu-me do fruto da árvore e eu comi” (vers. 12). Adão representa essa humanidade que, mergulhada no egoísmo e na autossuficiência, esqueceu os dons de Deus e vê em Deus um adversário; por outro lado, a resposta de Adão mostra, igualmente, uma humanidade que quebrou a sua unidade e se instalou na cobardia, na falta de solidariedade, no ódio. Escolher caminhos contrários aos de Deus não pode senão conduzir a uma vida de rutura com Deus e com os outros irmãos.


Vem, depois, a "defesa" da mulher: "a serpente enganou-me e eu comi" (vers. 13). No Egito antigo, a serpente na tiara do Faraó simboliza o olho de Marduc o Deus sol que com seu halito podia destruir os inimigos. Entre os povos cananeus, a serpente estava ligada a Baal e seusrituais de fertilidade e de fecundidade. Os israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e, com frequência, abandonavam Jahwéh para seguir os rituais religiosos dos cananeus e assegurar, assim, a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o autor jahwista escreve, a serpente era, o "fruto proibido", que seduzia os crentes e os levava a abandonar a Lei de Deus. A "serpente" é, neste contexto, um símbolo literário de tudo aquilo que afastava os israelitas de Jahwéh. A resposta da "mulher" confirma tudo aquilo que até agora estava sugerido: é verdade, a humanidade que Deus criou prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e enveredou por outros caminhos. Achou, no seu egoísmo e autossuficiência, que podia encontrar a verdadeira vida à margem de Deus, prescindindo das propostas de Deus. Confira o rodapé da Biblia Pastoral.

Diante disto, não são precisas mais perguntas. Está claramente definida a culpa de uma humanidade que pensou poder ser feliz em caminhos de egoísmo e de autossuficiência, totalmente à margem dos caminhos que foram propostos por Deus.


Que tem Deus a acrescentar? Pouco mais, a não ser condenar como falsos e enganosos esses cultos e essas tentações que seduziam os israelitas e os colocavam fora da dinâmica da Aliança e dos mandamentos (vers. 14-15). O nosso catequista jahwista sabe que a serpente é um animal miserável, que passa toda a sua existência mordendo o pó da terra. O autor vai servir-se deste dado para pintar, plasticamente, a condenação radical de tudo aquilo que leva os homens a afastar-se dos caminhos de Deus e a enveredar por caminhos de egoísmo e de autossuficiência.


O que é que significa a inimizade e a luta entre a "descendência" da mulher e a "descendência" da serpente? Provavelmente, o autor jahwista está apenas a dar uma explicação etiológica (uma "etiologia" é uma tentativa de explicar o porquê de uma determinada realidade que o autor conhece no seu tempo, a partir de um pretenso acontecimento primordial, que seria o responsável pela situação atual) para o facto de a serpente inspirar horror aos humanos e de toda a gente lhe procurar "esmagar a cabeça"; mas a interpretação judaica e cristã viu nestas palavras uma profecia messiânica: Deus anuncia que um "filho da mulher" (o Messias) acabará com as consequências do pecado e inserirá a humanidade numa dinâmica de graça.


Atenção: o autor sagrado não está querendo falar de um pecado cometido nos primórdios da humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher; mas está querendo falar do pecado cometido por todos os homens e mulheres de todos os tempos... Ele está apenas ensinando que a raiz de todos os males está no fato de o homem prescindir de Deus e construir o mundo a partir de critérios de egoísmo e de autossuficiência. Não conhecemos bem este quadro?

 

ATUALIZAÇÃO

• Um dos mistérios que mais questiona os nossos contemporâneos é o mistério do mal... Esse mal que vemos, todos os dias, tornar sombria e deprimente essa "casa" que é o mundo, vem de Deus, ou vem do homem? A Palavra de Deus responde: o mal nunca vem de Deus... Deus criou-nos para a vida e para a felicidade e deu-nos todas as condições para imprimirmos à nossa existência uma dinâmica de vida, de felicidade, de realização plena.

• O mal resulta das nossas escolhas erradas, do nosso orgulho, do nosso egoísmo e autossuficiência. Quando o homem escolhe viver orgulhosamente só, ignorando as propostas de Deus e prescindindo do amor, constrói cidades de egoísmo, de injustiça, de prepotência, de sofrimento, de pecado... Quais os caminhos que eu escolho? As propostas de Deus fazem sentido e são, para mim, indicações seguras para a felicidade, ou prefiro ser eu próprio a fazer as minhas escolhas, à margem das propostas de Deus?

• O nosso texto deixa também claro que prescindir de Deus e caminhar longe dele leva o homem ao confronto e à hostilidade com os outros homens e mulheres. Nasce, então, a injustiça, a exploração, a violência. Os outros homens e mulheres deixam de ser irmãos para passarem a ser ameaças ao próprio bem-estar, à própria segurança, aos próprios interesses. Como é que eu me situo face aos meus irmãos? Como é que eu me relaciono com aqueles que são diferentes, que invadem o meu espaço e interesses, que me questionam e interpelam?

• O nosso texto ensina, ainda, que prescindir de Deus e dos seus caminhos significa construir uma história de inimizade com o resto da criação. A natureza deixa de ser, então, a casa comum que Deus ofereceu a todos os homens como espaço de vida e de felicidade, para se tornar algo que eu uso e exploro em meu proveito próprio, sem considerar a sua dignidade, beleza e grandeza. O que é que a criação de Deus significa para mim: algo que eu posso explorar de forma egoísta, ou algo que Deus ofereceu a todos os homens e mulheres e que eu devo respeitar e guardar com amor?

 

 

 

RESPONDA 

1) A serpente é amaldiçoada, o homem e a mulher são castigados. O que a maldição ou os castigos expressam em relação à serpente, ao homem e à mulher? 

 

 2) Quais as situações de discriminação vividas pelas mulheres como fruto de uma leitura fundamentalista de Gênesis 2,25 e 3,1-24? 

 

3) O que significa no Gênesis a árvore, a maça e serpente? 

 

4) Qual foi o pecado de Adão é Eva? 

 

5) Faça uma relação entre o sonho de Salomão (1R  3,5-15) com a árvore do conhecimento do bem e do mal. O que tem em comum?

 

Leituras complementares: 

 

1) https://leituraorante.comunidades.net/12-por-que-deus-deixou-a-arvore-do-conhecimento Por que ele não a tirou fora para que o homem não pecasse?

 

2) https://leituraorante.comunidades.net/8-o-que-significam-no-genesis-a-arvore-a-maca

 

3) https://leituraorante.comunidades.net/11-se-o-homem-nao-tivesse-pecado-haveria

 

4) https://leituraorante.comunidades.net/15-onde-era-o-paraiso

 

5) https://leituraorante.comunidades.net/16-qual-foi-o-pecado-de-adao-e-eva