Situando o texto: De acordo com o ensinamento oficial do Antigo Testamento, as doenças e as desgraças eram consideradas como castigo de Deus por causa do pecado. O fato de as pessoas nascerem com algum tipo de doença era atribuído ao pecado dos pais (Ex 20,5; 34,7; Nm 14,18; Jo 9,2.34).
No tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, essa crença continuava existindo através das leis dos fariseus e escribas que excluíam os pobres e os doentes. Conforme a Lei, interpretada pelos dirigentes da comunidade judaica, uma pessoa doente era pecadora, considerada impura (Mc 7,14-30; 15,25-34) e sua participação na sociedade era limitada; por exemplo, não tinha acesso ao culto. Naquele tempo, havia grande número de pessoas à margem da sociedade, muitos viviam como mendigos. Vamos ver como esse problema aparece na comunidade joanina e responder as seguintes perguntas:
-Por que o cego foi expulso da sinagoga?
-Quais os problemas que a comunidade de João estava vivendo?
Atualização: O cego é uma figura representativa da comunidade joanina. As pessoas que começaram a enxergar aceitaram a proposta de Jesus. Começaram a viver de um jeito novo. A Lei passou a ser vista e vivida em função da vida. A comunidade cristã tentou não criar divisões entre as pessoas e viver a solidariedade, que se manifesta através dos gestos de Jesus com o cego. Para os cristãos, a vida era maior que a Lei. Isso incomodou as autoridades judaicas e os cristãos acabaram sendo expulsos da sinagoga.
Situando o texto no contexto: o cego de nascença é figura que representa o grupo de pessoas que começaram a enxergar, na proposta cristã, um novo jeito de viver: um projeto de vida baseado no amor e na solidariedade. Isso provocou uma ruptura no esquema proposto pelos judeus fariseus, que exigiam o cumprimento da Lei. Os judeus fariseus, acusaram os judeus cristãos de ser infiéis às exigências da Lei de Moisés, interpretadas pelos escribas. A vivência dos cristãos acaba afirmando: a vida vale mais do que a lei. E isso provoca uma reviravolta: tira a sustentação ideológico-religiosa do cumprimento da Lei e da cobrança de tributos. Por isso, os judeus cristãos passam a ser perseguidos por todos aqueles que viviam do Templo e dos cultos e viam diminuir suas fontes de renda.
Os conflitos aumentaram, culminando com a expulsão dos judeus cristãos da sinagoga. Isso aconteceu por volta do ano 85 d.C. Separados da comunidade judaica, os cristãos ficaram sem proteção, sem trabalho, sem relações sociais e comerciais, separados de sua tradição religiosa, dos serviços e ritos religiosos. Portanto, sem a religião judaica farisaica, permitida pela lei do império, os judeus cristãos deveriam assumir outra religião que fosse reconhecida pelos romanos, caso contrário seriam vistos como inimigos.
Roma impunha a sua religião: o culto ao imperador. Não aceitar a religião do Estado significava ir contra ele e ser tachado de subversivo. O culto ao imperador se chocava com a consciência cristã. Os cristãos eram considerados inimigos do Estado havia muito tempo. Por isso eram vigiados e tidos como responsáveis por todas as desgraças que aconteciam na cidade. Em Roma, os cristãos estavam fichados nos registros da polícia.
A situação da comunidade era de muita insegurança. De um lado, as autoridades religiosas e do império mantinham sobre ela uma contínua vigilância. O menor deslize seria motivo para denúncia, prisão, tortura e apedrejamento. De outro lado, a multidão passou a ver os cristãos como pessoas suspeitas, gente perigosa e imoral.
Naquele tempo, era o Estado que concedia às pessoas o direito de se reunir em associações. Os cristãos não tinham esse direito. O simples fato de se reunir era motivo de denúncia por perturbar a ordem e a segurança da nação. As pessoas mais pobres tinham o direito de se reunir para ajuntar fundos para os funerais. É possível que muitos cristãos tenham se reunido através dessas associações, daí o nome de cristãos das catacumbas.
Essa situação de dor e exclusão obrigou o grupo dos judeus cristãos a definir qual era a sua verdadeira identidade, a reconhecer Jesus como o Filho do Homem (9,35-38).
Comentando o texto: Na festa das Tendas, Ex 23 e 34 (também conhecida como Festa dos Tabernáculos ou Festa das Cabanas ou Festa das Tendas ou, ainda, festa das colheitas, tendo em vista que coincide com a estação das colheitas em Israel, no começo do outono) https://www.paulinas.org.br/pub/loja/livros_degustacao/520233.pdf Jesus sobe a Jerusalém e ensina no Templo (7,14); entra em choque com os fariseus e escribas e se vê obrigado a se retirar às escondidas (8,59).
Ao sair do Templo, vê um cego de nascença e se aproxima. Além da doença física, o cego sofria de outro mal: o isolamento e a solidão. Com o gesto de se aproximar, Jesus ultrapassa a Lei e privilegia a vida.
A cura do cego é um dos sinais escolhidos pela comunidade joanina para mostrar que Jesus é o Filho de Deus (9,1-7). O cego representa a comunidade. Ele não se encontra no Templo, mas no caminho. Conforme a Lei de Moisés, interpretada pelas autoridades judaicas, a doença era conseqüência do pecado. A comunidade cristã apresenta uma nova visão: não, a doença não está relacionada ao pecado, mas pode servir para a manifestação da obra de Deus (9,3). E a obra de Deus é que o ser humano tenha vida e uma vida saudável, que as pessoas tenham casa, comida, integração social, enfim, que elas vivam plenamente (10,10).
Os vizinhos, acostumados com o cego vivendo na mendicância, estranham. As pessoas dentro do esquema oficial não conseguem entender a transformação daqueles que vivem uma nova proposta de vida (9,8-12). Diante dos questionamentos e do conflito, o cego se define e assume a sua própria identidade (9,9). Ele conta como foi a sua cura e o fato de Jesus mandá-lo à piscina de Siloé para se purificar, único local oficial de cura: "Fui, lavei-me e recobrei a vista" (9,11).
As pessoas que vivem o sistema estabelecido pelo judaísmo farisaico e pelo império romano, inconformadas diante desse novo fato, levam o cego para as autoridades judaicas (9,13-17). Os mestres e os doutores da Lei não aceitam que a salvação aconteça fora do domínio deles. Isso prejudica sua organização e sua fonte de renda. Como o cego insiste em sua versão sobre a cura, as autoridades convocam os seus pais para um interrogatório (9,18-23). Os pais não tomam partido, não expressam nem mesmo a alegria diante da cura, porque aqueles que reconhecessem Jesus como o Cristo seriam expulsos da sinagoga (9,22).
E o julgamento continua. Novamente o cego é convocado para um interrogatório (9,24-34). Neste interrogatório, o cego tem maior autonomia: ele desafia, de maneira irônica, as autoridades: "Por que quereis ouvir novamente? Por acaso quereis tornar-vos seus discípulos?" (9,27). Tem a ousadia de questionar o conceito de pecador imposto pelos fariseus: "Sabemos que Deus não ouve os pecadores, mas se alguém é temente a Deus e faz a sua vontade, a este Deus escuta" (9,31). O cego vai além, ao afirmar que, se aquele homem não fosse de Deus, nada poderia fazer (9,33). A conseqüência de ter sido curado, de abrir os olhos, é uma maior conscientização e não-aceitação da opressão. Isto leva à expulsão (9,34).
A comunidade experimentou, através de Jesus, a gratuidade do amor de Deus, por isso conseguiu permanecer fiel diante da pressão do sistema dominante: o império romano e os judeus fariseus. Ao ser expulso da sinagoga, o cego reconhece Jesus como o Filho do Homem: "Eu acredito, Senhor" (9,38). É somente após a aceitação e a fidelidade das pessoas que Jesus se revela como o Messias (4,26; 9,37).
Neste Evangelho temos dois grupos bem definidos (9,40-41): de um lado está o ex-cego - o grupo dos judeus cristãos. De outro, estão os judeus fariseus, os que se julgam esclarecidos (9,16.22.24.29.34), mas que na realidade são incapazes de reconhecer Jesus presente e vivo na comunidade. Eles permanecem em sua cegueira porque recusam o projeto da partilha e da solidariedade. É como diz o povo: "O pior cego é aquele que não quer ver".
Aprofundamento: Quem se opõe à comunidade e a persegue?
No Evangelho de João a palavra mundo aparece 78 vezes, com os, seguintes sentidos: planeta como espaço físico (1,10; 3,16), humanidade (3,17) e os inimigos (8,23; 15,18-19; 16,11; 17,6.14.16). O uso mais comum da palavra mundo, neste Evangelho, é o de nomear as pessoas que faziam oposição à comunidade: os judeus fariseus e o império romano. O grupo dos fariseus tem sua origem no grupo dos piedosos, homens fiéis à Lei de Moisés. A preocupação deles era com o estudo e o ensino da Lei. Após a destruição do Templo (70 d.C.), os judeus fariseus se tornaram o grupo dominante, aliado dos romanos e perseguidor dos cristãos.
O domínio do império romano, vigente desde 63 a.C. até o século III, foi um período de muita crueldade, tirania e opressão. Nesse período, os saques às cidades e as guerras eram constantes. Após o ano 70 d.C., com os imperadores Tito e Domiciano, seguiu-se um tempo marcado por perseguições às doutrinas e religiões diferentes da religião do império, caracterizada pelo culto aos imperadores. No fim do século I, sob o governo de Domiciano, o culto dos cristãos foi declarado como religião ilícita e eles foram perseguidos como inimigos do império. Os cristãos eram torturados, muitos foram mortos.
O medo e a insegurança faziam parte do cotidiano da comunidade cristã. Muitas pessoas eram simpáticas ao projeto cristão, mas, devido ao estilo de vida dos cristãos, ou por medo das autoridades judaicas, não assumiam essa nova proposta de vida. Nesse grupo encontramos:
Membros do grupo de João Batista: os primeiros discípulos de Jesus vieram do grupo do Batista. Porém, alguns seguidores desse grupo não aceitaram a comunidade cristã, porque eram apegados à mentalidade judaica e preservavam o conceito de judeu como povo escolhido. No Evangelho de João há muitas descrições que realçam a superioridade de Jesus em relação a João Batista (1,8.15; 3,30-31; 5,33-36; 10,40-42).
Pais do cego: experimentam a gratuidade e o amor de Deus, mas, por medo dos judeus fariseus, não se comprometem (9,20-22).
Nicodemos e José de Arimatéia: representam pessoas importantes da comunidade judaica. São simpáticos à comunidade cristã, mas não o suficiente para abrir mão de seus privilégios e status social (3,1; 7,50; 19,38). Nicodemos, por exemplo, não aceita o batismo na água (3,5-7). Naquele tempo, ser batizado na água tinha o sentido de uma confissão pública e social da própria fé.
Assumir a proposta cristã nos dias de hoje continua sendo um desafio. Não vivemos num contexto de perseguição religiosa, mas estamos inseridos e inseri das numa realidade onde impera a morte. A cada dia que passa aumenta o número de excluídos e excluídas, cresce o desemprego, a exploração e as injustiças. Nosso compromisso como seguidores e seguidoras de Jesus é ouvir e assumir a causa dos pobres, dos oprimidos e oprimidas (Ex 3,7).
A comunidade joanina nasceu com pessoas que estavam sofrendo com o império romano e com o judaísmo farisaico. Elas começaram a buscar uma forma alternativa de viver, experimentaram a solidariedade e a partilha. Mas quem eram essas pessoas? A que grupo pertenciam? Quais os conflitos que enfrentaram para levar avante o projeto cristão? Certamente você tem as suas respostas para essas questões! Que bom, vamos dialogar sobre isto no próximo encontro. Até lá!