Fonte: Este e os demais encontros foram extraídos do livro: Da comunidade Nasce a Vida! Evangelho de João: Roteiros e subsídio para encontros - Centro Bíblico Verbo -
A partir da dominação dos gregos (333 a.C.), as condições de vida na Palestina tornaram-se cada vez mais insuportáveis. As pessoas estavam sendo dominadas, exploradas e escravizadas. Muitos grupos populares resistiram à dominação e buscaram uma forma alternativa de viver. No tempo de Jesus e um pouco depois, as revoltas e os descontentamentos contra a opressão dos romanos eram abundantes. Em 66 d.C., quando os romanos saquearam o Templo de Jerusalém, os vários grupos, mesmo tendo posições diferentes, uniram-se para lutar contra os dominadores. Esse movimento ficou conhecido como a guerra judaica (66-73 d.C.).
Nessa guerra, o povo judeu foi derrotado pelos romanos. Jerusalém, a cidade santa, e o Templo foram destruídos. O Templo era uma instituição central na vida do povo, controlava a sua vida em todos os aspectos. Os principais grupos que participaram da guerra, os saduceus, os essênios, os zelotas e os sicários, foram desarticulados e quase desapareceram. A guerra desestruturou a vida dos habitantes da região da Judéia. Os judeus cristãos e os judeus fariseus não assumiram a luta até o fim, por isso conseguiram sobreviver. Após a guerra, esses grupos começaram a reorganizar a vida do povo.
Os fariseus e os escribas, menos dependentes do Templo, desenvolveram uma estrutura alternativa. Fazia tempo que eles exerciam suas atividades nas sinagogas, através da função de explicar e interpretar a Lei. No contexto de destruição das instituições judaicas, como o Templo e o sinédrio - conselho supremo dos judeus -, o povo buscou refúgio e segurança no movimento dos fariseus e escribas. Aos poucos, os judeus fariseus foram-se fortalecendo, a sinagoga passou a ser forte instituição para garantir, proteger e controlar a vida do povo. Assim, os romanos perceberam que seria vantajoso se aliar aos judeus fariseus.
A aliança com os romanos favoreceu o desenvolvimento dos grupos de linha farisaica. Surgiram muitos grupos, entre eles a Academia de Jâmnia, fundada pelo rabino Iohanan ben-Zakai. O chefe desse grupo, o Patriarca, era reconhecido pelo império romano como representante do povo judeu. Como aliado dos romanos, eles tinham o direito de interpretar e aplicar a Lei, utilizando-a também para cobrar tributos dos judeus. Isso interessava aos romanos.
A principal Lei era a do sábado. Uma lei que nasceu para manter viva a memória da libertação e assegurar o descanso da comunidade, mas que com o tempo se cristalizou. O cumprimento da Lei foi posto acima da pessoa. Outra Lei igualmente importante era a da pureza. Essa lei dividia as pessoas e as coisas em puras e impuras.
A lei do puro e do impuro definia quem estava mais perto e quem estava mais longe de Deus. Uma pessoa doente ou com alguma deficiência física era considera-o da impura por causa de algum pecado, uma vez que a doença era vista como castigo de Deus. O simples contato com pessoas ou coisas impuras já causava impureza. Estar impuro significava"não poder participar do culto e, consequentemente, da salvação.
Muitas pessoas viviam em condições quase permanentes de impureza. As autoridades judaicas, através da Lei, tinham a pretensão de controlar o corpo do homem e da mulher. Essa situação de opressão tinha maior peso para a mulher, que ficava impura por causa da menstruação (Lv 15,19), das relações sexuais (Lv 15,18) e do dar à luz (Lv 12,2-5). Para se purificarem, as pessoas deviam levar ofertas e pagar o tributo religioso em dia. Isso custava muito caro, dificultando para os pobres o cumprimento da Lei.
Os judeus fariseus viam no cumprimento da Lei uma exigência do próprio Deus. Essa crença, unida à crença na ressurreição dos mortos e na teologia da retribuição, com prêmios e castigos para esta vida e a outra era usada para manter o povo na obediência rigorosa às normas impostas pelos dirigentes fariseus. A teologia da retribuição estava ligada à idéia de troca: se a pessoa cumprisse a Lei, seria abençoada com terra, descendência e vida longa. Se não cumprisse receberia o castigo: pobreza, esterilidade e vida breve (Dt 30,15-20).
O ensino da Lei era realizado através da sinagoga. Por volta do ano 85, as sinagogas estavam espalhadas na Ásia Menor. Nessa região, a comunidade judaica era uma cidade dentro da cidade. Por causa da aliança cor romanos, a religião judaica, organizada pelos fariseus era considerada como religião lícita - permitida pelo império romano. Os judeus ligados à sinagoga conquistaram o direito de se reunir, de manter um caixa comum e de ter propriedades. Eram dispensados de prestar culto às divindades do império romano, tinham o direito de observar o sábado, de praticar seu culto e a Lei e participavam do exército - só de judeus - quando necessário. Cada comunidade local tinha suas leis administrativas, estabe1ecia locais para estudo, culto e sepultamentos; oferecia ajuda aos indigentes e mantinha tribunais para julgar disputas entre judeus.
Os judeus fariseus, na tentativa de preservar a identidade como grupo e manter seus interesses, começaram a exigir observância rigorosa da Lei. Havia 613 regras para ser cumpridas. A opressão era muito grande. No interior da sinagoga surgiram alguns grupos, entre eles o grupo dos cristãos, que começaram a relativizar a importância da Lei, pondo em primeiro lugar a vida humana. Isso provocou vários conflitos. Aqueles que não cumpriam a Lei foram perseguidos, torturados e expulsos da sinagoga, e conseqüentemente estavam sujeitos à perseguição do império romano.
Entre esses grupos, estava a comunidade joanina. Ela teve sua origem entre os judeus que acreditaram que Jesus era o Messias esperado por eles. A guerra dos judeus contra os romanos (66 d.C.) provocou a dispersão das comunidades cristãs. Essas comunidades foram para o norte da Palestina e chegaram até a Síria. Em 70 d.C., emigrou para Éfeso.
A comunidade joanina era composta de pessoas pobres e marginalizadas que começaram a viver de um jeito novo. Uma comunidade de irmãos e irmãs, unidos não pela Lei, mas pelo amor. Essas pessoas, provavelmente, viviam sob a opressão da Lei. Elas conseguiram ver a proposta cristã como um caminho alternativo. A vivência do amor mútuo e a certeza da presença do Verbo Encarnado em cada mulher e homem, eram as bases que sustentavam e animavam a comunidade joanina. Que força! Que resistência e coragem! Nesta caminhada nasce o evangelho de João.
Estrutura do Evangelho de João: O Evangelho da comunidade de João nasceu do anúncio vivo, da memória de homens e mulheres que guardavam e praticavam os ensinamentos transmitidos por Jesus. É a vida da comunidade, suas lutas e dificuldades, os conflitos vividos com as autoridades judaicas, com o império romano e com os seus próprios membros em suas diferentes compreensões da mensagem de Jesus.
Diante das perseguições e das crises internas e externas, a comunidade foi sentindo a necessidade de reafirmar sua própria fé e definir a sua identidade. Para isso, os/as autores/as selecionaram algumas expressões e acontecimentos marcantes da vida de Jesus com a finalidade de levar os seus primeiros leitores à fé em Jesus como o Messias, o Filho de Deus presente na história: "E o Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós" (1,14).
A situação de perseguição levou a comunidade joanina a usar uma linguagem simbólica, mas que lhe era familiar, com imagens tiradas do cotidiano, da tradição judaica e do momento presente. Por exemplo, a apresentação de Jesus é feita através da expressão Eu sou, termo muito conhecido do povo judeu, pois era o nome próprio de Javé (Ex 3,14). A comunidade acrescenta: "Eu sou o pão da vida" (6,35.48.51), "a luz do mundo" (8,12; 9,5), "a porta das ovelhas" (10,7.9), "o bom pastor" (10,11.14), "a ressurreição e a vida" (11,25), "e a verdadeira videira" (15,5). Imagens simbólicas, ligadas ao cotidiano da vida das pessoas, que revelam o cuidado de Jesus com a vida de seus discípulos e discípulas.
Ao longo do Evangelho de João há grande variedade de imagens simbólicas. Podemos classificá-las em quatro tipos:
Símbolos ligados a números: seis talhas de pedras vazias (2,6), uma referência às seis festas judaicas mencionadas no Evangelho. Os cinco maridos da mulher samaritana lembram os cinco povos que foram deportados de outras regiões para a Samaria (2Rs 17,24);
Objetos: talhas, o poço de Jacó e o cântaro (2,6; 4,12.28) podem ser uma referência à Lei;
Natureza: Videira e os ramos (15,1-2), um símbolo da comunidade;
Personagens: discípulo amado, mulher samaritana, Maria de Betânia, Marta e Maria Madalena, representantes da comunidade joanina.
O uso de símbolos é uma característica marcante do Evangelho de João. Outra característica importante é o jeito de os autores e autoras organizarem a estrutura desse livro. Pois bem, então vamos ver como esse livro foi planejado.
O Evangelho de João pode ser dividido de várias formas. Nós escolhemos a estrutura que divide o texto em duas grandes partes: a primeira são os sete sinais realizados por Jesus e a segunda o grande sinal: a entrega de Jesus por amor.
A primeira (2,1-12,50) e a segunda parte (13,1-20,29) podem ser definidas pelo tema da hora: minha hora não chegou (2,4) versus a minha hora já chegou (13,1). Entre essas duas partes há um texto que marca a passagem de uma para a outra (11,55-12,50), no qual vemos que a hora de Jesus se aproxima.
Podemos dividir o Evangelho de João da seguinte forma:
Prólogo -1,1-18: abertura e síntese do livro. No prólogo encontramos um resumo de todos os temas que serão desenvolvidos ao longo do Evangelho.
Seção introdutória - 1,19-51: uma pequena introdução na qual aparece João Batista, o seu testemunho a respeito de Jesus e os primeiros discípulos de Jesus.
Primeira parte - 2,1-12,50: na primeira parte a hora de Jesus ainda não chegou (2,4). O Livro dos Sinais apresenta sete sinais, número que significa perfeição. Os sinais indicam a realização do tempo messiânico.
1º Sinal (2,1-12): bodas em Caná
2º Sinal (4,46-54): a cura do filho de um funcionário real
3º Sinal (5,1-9): a cura de um paralítico
4º Sinal (6,1-15): a multiplicação dos pães
5º Sinal (6,16-21): Jesus caminha sobre as águas
6º Sinal (9,1-41): a cura de um cego de nascença
7º Sinal (11,1-44): a ressurreição de Lázaro
Passagem -11,55-12,50: a hora de Jesus está se aproximando.
Segunda parte - 13,1-20,29: a hora de Jesus já chegou: "Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai" (13,1). Esta parte é conhecida como o Livro da Glorificação. É uma catequese para a comunidade e pode ser subdividida em três unidades:
Os capítulos 13 a 17 são chamados o livro da comunidade. Antes de entregar sua vida, Jesus reúne os seus para um jantar de despedida no qual realiza um gesto simbólico e profético: o lava-pés (13,1-20). Nesta ocasião, Jesus faz um discurso de despedida e deixa como herança para a comunidade o novo mandamento do amor mútuo (13,34se 15,12-17); promete que enviará o Espírito da Verdade (14,26; 16,12-15), faz uma avaliação de sua vida e missão e reza ao Pai pela unidade (17).
Epílogo (20,30-31): a conclusão.
Apêndice (21,1-23): uma nova manifestação de Jesus aos discípulos.
2ª conclusão (21,24-25).
Organização do livro. Viver o amor e defender a vida! Um desafio para a comunidade joanina. Um desafio para as comunidades de hoje e para cada pessoa. Este nosso livro também é fruto de uma experiência comunitária. Muitas pessoas se uniram no desejo comum de apresentar às lideranças e assessorias das comunidades alguns roteiros e subsídios para a reflexão e oração bíblica nos vários grupos: comunidades, círculos bíblicos, grupos de rua etc.
Quando ouvimos falar de um conflito numa comunidade diferente da nossa, logo nos perguntamos: mas qual o problema que essa comunidade está vivendo? E o que ela está fazendo para superar as dificuldades? Junto com as respostas, ficamos sabendo de outras informações, tais como: quem são os membros da comunidade, quem participa, assumindo os compromissos da comunidade, e quem apenas é visitante ou turista. Aproximando-nos um pouco mais da vida da comunidade, ficamos sabendo como essa comunidade vive e celebra a sua fé, quais são os seus valores, quais os grupos e as pastorais existentes e qual o seu testemunho para o mundo de hoje. Aos poucos, vamos definindo as características desta comunidade.
Adotamos os mesmos passos para conhecer a comunidade de João. Vamos fazer o seguinte caminho: apresentar as pessoas que fazem parte dessa comunidade, os seus inimigos, os grupos ou pessoas que assumem a proposta cristã e aqueles que, apesar da simpatia, preferem continuar no sistema oficial. A reflexão sobre esse tema se dará no primeiro e no segundo encontro (9,1-41; 4,1-30). Em seguida, a prática dessa comunidade, formada por mulheres e homens que vivem o amor e se unem para lutar por melhores condições de vida. O terceiro e o quarto encontro nos ajudarão a descobrir esse novo jeito de viver (2,1-12; 13,1-17).
A comunidade cristã rompe com o sistema baseado no cumprimento rigoroso da Lei. Isso ameaça a autoridade dos judeus fariseus. Os cristãos são expulsos da sinagoga, uma instituição religiosa, política e econômica dos judeus, reconhecida pelo império romano. Com isso, os cristãos passam a ser perseguidos. Em meio a esse sofrimento a comunidade vivencia uma nova relação de comunhão, entendida por nós como a vivência do mistério da Trindade. Esse é o tema do quinto encontro (15,117). O amor mútuo é a força que ajuda na resistência, que só se toma possível porque a experiência de Deus, presente e vivo na comunidade é renovada a cada instante. Essa experiência, o seu grupo poderá revivê-la nas reflexões propostas no sexto e sétimo encontro (11,1-44; 20,11-18).
No oitavo encontro (1,1-18) faremos uma reflexão sobre o Prólogo, que apresenta uma síntese de todo o Evangelho, coroando com a mensagem central: "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (1,14). Deus faz morada no meio do povo. Essa certeza motivou a comunidade joanina em sua caminhada. Refazer essa mesma experiência nos dá novo ânimo e vigor em nossas buscas e lutas de hoje.
A nossa leitura do Evangelho de João será conduzida pelos seguintes textos:
9,1-41: o conflito com os judeus fariseus e a expulsão dos judeus cristãos da sinagoga;
4,1-30: os samaritanos participam da comunidade joanina;
2,1-12: as diversas formas de resistência e a presença da mulher como articuladora de uma vida nova;
13,1-17: a prática da nova comunidade é o serviço, a solidariedade e a partilha;
15,1-17: a comunidade precisa de uma mística forte para resistir à perseguição;
11,1-44: a mística que une a comunidade é o amor mútuo e a vivência do mistério. É a certeza de que Jesus é o "Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo" (11,27);
20,11-18: um dos sinais de ressurreição é a vivência do amor. É a presença do ressuscitado que nos torna capazes de estabelecer relações novas;
1,1-18: a nova prática da comunidade não está baseada na Lei, mas na encarnação. "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (1,14).
A ideia central que perpassa todos os textos do Evangelho de João é a certeza de que Deus, o Verbo encarnado, está entre o seu povo. A sua ordem e a sua herança para a comunidade se resumem nisso: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei" (15,12; 13,34).