Enquanto policiais mandavam um grupo de sem-tetos esvaziar um prédio invadido na Avenida Ipiranga, Júlia, 7, só pensava em não deixar para trás todo o seu material escolar. Paula, a mãe, diz que a filha não queria perder a aula no dia seguinte. Fazia frio, e a lona da barraca não impedia o vento de entrar. Mesmo protegida por cobertores, a menina acordou com os lábios rachados pelo frio, e o corpo dolorido pela cama dura. “Tava muito frio, parecendo gelo”, disse. Depois do café da manhã (um copo de refrigerante e pão com manteiga), a mãe conseguiu que ela tomasse banho em outro prédio invadido na Ipiranga. Só que havia fila, e Paula e Júlia demoraram mais do que o planejado. Chegaram às 13h08 à escola. Os portões haviam fechado. Paula ainda insistiu com uma funcionária, que negou a entrada. Júlia teve que voltar para o acampamento.[1]
A presença dos crucificados se faz realidade no meio de nós. Conhecemos quem são eles e elas? Depende de cada um. Depende da experiência do nosso cotidiano. Basta olhar ao nosso redor com mínima sensibilidade. Ou – para nós, cristãos – olhar com a fé no Cristo Jesus encarnado, crucificado e ressuscitado no meio das pessoas empobrecidas e crucificadas.
Muitos cristãos costumam ter compaixão e misericórdia pelos crucificados, e até refletem sobre a mudança de mentalidade: pensar mais no amor de Deus e voltar-se para ele. Porém, a verdadeira mudança deve atingir todas as dimensões da vida: os pensamentos, as relações humanas, sociais e econômicas. Deus se manifesta na totalidade da vida humana, pois a criatura humana é imagem e semelhança do Criador (Gn 1,26-27). Deve-se escutar o grito de corpos massacrados no cotidiano, e criar as condições favoráveis para eles.
No cotidiano das primeiras comunidades cristãs, como no cotidiano da maioria dos cristãos de hoje, sempre existiu o problema dos crucificados, os conflitos entre os privilegiados, os excluídos e o individualismo religioso. Destacamos, entre outras, a comunidade cristã de Lucas, que focaliza os fortes contrastes sociais entre os pobres e os ricos, por meio de seus textos exclusivos, como, por exemplo, a parábola do pobre Lázaro e do rico (Lc 16,19-21).
Em resposta à dura realidade dos pobres e oprimidos, a comunidade cristã de Lucas transmite, interpreta e aumenta as mensagens de Jesus de Nazaré. Uma delas é o sermão da planície (Lc 6,17-49), que se equipara ao sermão da montanha de Mateus (Mt 5-7). O sermão, sobretudo em Lc 6,20-26, insiste no tema dos pobres, famintos e injustiçados a quem o reino de Deus pertence. Anuncia assim que suas situações se reverterão. Para refletir sobre o tema dos contrastes sociais entre pobres e ricos e da sociedade justa e fraterna à luz de Lc 6,20-26, vamos conhecer a sociedade greco-romana na qual a comunidade de Lucas estava inserida:
Na sociedade do primeiro século, havia duas categorias: os ricos e os pobres. Os ricos (entre 1 e 5% da população) eram aqueles que viviam em abundância sem necessidade de trabalhar para sobreviver. Os pobres, pelo contrário, eram todos os que não podiam manter-se sem trabalhar fisicamente. Ou seja, “trabalhar com as próprias mãos”, diz Paulo. Nesse grupo estavam os agricultores, os comerciantes, os artesãos etc. Havia também os pobres – “indigentes” – que necessitavam mendigar para sobreviver.
No último patamar da categoria dos pobres estavam os escravos e as escravas, pessoas sem liberdade, sem direitos e sem dignidade humana e, em certos casos, sujeitos a abusos e espancamentos. De fato, na sociedade do tempo de Lucas existia um abismo descrito na história do pobre Lázaro: “Entre nós e vós existe um grande abismo, a fim de que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o possam, nem tampouco atravessem de lá até nós” (Lc 16-26).
Por trás da sociedade greco-romana havia um mecanismo de explorar e manter esses pobres em condição de escravidão:
2.: o Império, por meio de sua política patronal, sabia se beneficiar de todas as atividades econômicas: cobrava, com mão de ferro, taxas e impostos, o que levava pequenos comerciantes e produtores rurais à falência. Os ricos se mantinham, pois eram donos de latifúndios e estavam inseridos na “rede comercial” do sistema patronal. Isso fazia crescer, cada vez mais, a diferença entre ricos e pobres. “Alguns publicanos também vieram para ser batizados e disseram-lhe; ‘Mestre, que devemos fazer?’. Ele disse: ‘Não deveis exigir nada além do que vos foi prescrito’” (Lc 3,13). O texto exclusivo de Lucas descreve o abuso cotidiano da cobrança de tributo no império romano, empobrecendo a população.
Tributos
3. :havia um poderoso exército para conquistar e sustentar o domínio do Império. Uma de suas funções era controlar o cotidiano da população, frequentemente cometendo abusos. “Os soldados, por sua vez, perguntavam: ‘E nós, que precisamos fazer?’. Disse-lhes: ‘A ninguém molesteis com extorsões; não denuncieis falsamente e contentai-vos com o vosso soldo’” (Lc 3,14). Esse texto, exclusivo do evangelho de Lucas, teria nascido da realidade de violência e de abuso do exército.Exército
4.: Religião: outro recurso que o Império utilizava para expandir seu poder e manter o controle social eram a religião: a divinização da imagem do imperador, exibindo-a em moedas, broches, taças, estátuas, altares e fóruns. Promovia cultos, sacrifícios, jogos, festas e festivais em datas significativas da vida do imperador, criando uma “aura” divina em torno de sua imagem.
5. Religião oficial dos judeus: além de pagar os impostos civis, os judeus deviam honrar as leis e os tributos religiosos, como o dízimo. Quem não conseguia observar era considerado impuro e endemoninhado. Era excluído da benção de Deus e do Reino de Deus. Após a destruição do templo, os pobres sofriam toda a carga das restrições legais da sinagoga.
A sociedade greco-romana, marcada pela competição e ambição de riqueza, de poder e de honra, espoliava e excluía os pobres. A busca desenfreada por poder e a marginalização social dos pobres aconteciam também na convivência cristã. A discriminação contra os pobres atingia até o cerne da vivência cristã: a refeição comunitária em memória de Jesus.
A celebração era um dos momentos mais fortes da vivência comunitária. Um convite para experimentar a comunhão fraterna entre ricos e pobres, livres e escravos, judeus gentios, mulheres e homens. No entanto, muitas vezes isso não ocorria no interior das comunidades. “Quando, pois, vos reunis o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa por comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado”, assim afirma Paulo, condenando a divisão criada no momento da ceia (1Cor 11,20-21).
No mundo greco-romano, os cristãos pobres sofriam dentro e fora das comunidades. O evangelho de Lucas, provavelmente, foi dirigido a esse grupo sofrido e aflito da Ásia menor e da Grécia. Ele discute e apresenta o caminho de Jesus como caminho que transforma a sociedade injusta e excludente em uma nova sociedade de fraternidade.
2. Felizes vós, os pobres, e ai de vós, ricos…
“Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, que agora chorais, porque haveis de rir” (Lc 6,20-21).
A palavra “pobre”, no sentido original do termo bíblico anawim, encontra-se em Amós e Sofonias: “Porque vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e tornam torto o caminho dos pobres” (Am 2,6-7). Os pobres são as pessoas empobrecidas, espoliadas e injustiçadas pelos ricos desejosos de riqueza. São as vítimas da sociedade exploradora e excludente.
Para esses pobres, Jesus diz que eles são os destinatários das bem-aventuranças, e que deles é o Reino de Deus. Porém, esse não é o reino de César nem dos ricos ambiciosos, mas o reino inaugurado por Jesus segundo a sua proclamação, na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19; cf. Is 61,1-2).
A leitura do livro do profeta Isaías, episódio exclusivo do evangelho de Lucas, insiste no tema dos pobres e oprimidos que são libertados no Reino de Deus, onde não há mais nem fome nem choro. É uma nova sociedade de justiça, amor, reconciliação e partilha do “ano da graça” (cf. Lv 25). Por isso, a bem-aventurança dos pobres não significa a exaltação de sua condição precária e sofrida, mas porque Jesus, como o Deus dos pobres no Antigo Testamento, convive e liberta os pobres: “Sim, pois ele não desprezou, não desdenhou a pobreza do pobre, nem lhe ocultou sua face, mas ouviu-o, quando a ele gritou. Os pobres comerão e ficarão saciados, louvarão a Iahweh aqueles que o buscam” (Sl 22, 25.27).
A prática de Jesus era a da libertação dos pobres, e agora são os pobres que devem promover o Reino de Deus: “porque vosso é o Reino de Deus”. Eles são os sujeitos da construção da nova sociedade de justiça e solidariedade: “Procurai a Javé vós todos, os pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurai a justiça, procurai a solidariedade, talvez sejais protegidos no dia da ira de Javé” (Sf 2,3). Nesse contexto, surge um desafio: o seguimento de Jesus é o caminho da cruz, está na contramão da sociedade dominada pelo Império Romano e seus colaboradores:
Felizes sereis quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem, insultarem e proscreverem vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem. Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque no céu será grande a vossa recompensa; pois do mesmo modo seus pais tratavam os profetas (Lc 6,22-23).
A quarta bem-aventurança já se percebe bem no cântico do servo sofredor (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12): o servo, no sentido do povo sofrido do exílio na Babilônia (Is 54,17), é chamado para o serviço da justiça, é perseguido, resiste até o fim e por isso é morto, mas Deus o acolhe e lhe dá a vitória. No cântico, Deus está com o servo e intervém a seu favor. É um cântico de esperança e de futuro presente.
A ação de Deus é agora a de Jesus. Ele está com os pobres perseguidos e lhes promete o Reino de Deus, que está em oposição ao reino organizado pelas relações humanas baseadas na injustiça, no poder e em privilégio. O Reino de Deus dado aos pobres então exige deles uma ação de comprometer-se com a construção da sociedade de relações humanas de justiça, serviço e comunhão. A ação dos pobres é para a libertação do reinado deste mundo do mesmo modo que os profetas, como Amós e Miqueias, trabalharam: “os seus pais tratavam os profetas”.
O anúncio da bem-aventurança, portanto, não significa simplesmente uma promessa do futuro: “os pobres vão descansar no céu”, nem: “esta terra é a terra de lágrima e de penitência para ganhar o céu”. O anúncio não se trata de uma predição abstrata, mas uma convocação urgente para a ação libertadora. E essa ação atinge e envolve os ricos, para quem Lucas dirige a advertência dos quatro “ais”:
Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação! Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome! Ai de vós, que agora rides, porque conhecereis o luto e as lágrimas! Ai de vós, quando todos vos bendisseram, pois do mesmo modo seus pais tratavam os falsos profetas (Lc 6,24-26).
Primeiramente, os quatro “ais” são as maldições aos ricos, folgazões e ambiciosos da riqueza, que na acumulação espoliam os pobres. São contra o reinado de injustiça e de exclusão para o qual os falsos profetas propagam e contribuem. O mais importante, porém, é aplicar os quatro “ais” para os pobres também. Para eles, a maldição é uma advertência contra as seduções de riqueza e luxo sem limites, que os levam a se tornarem os protagonistas do mundo da injustiça.
A ‘bem-aventurança’ não se trata então de uma predição abstrata ou de uma promessa salvífica, mas de um anúncio da transformação do mundo de acúmulo e injustiça, feita com a força de solidariedade e partilha dos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré. É um forte alerta à consciência cristã diante da divisão socioeconômica entre pobreza e riqueza.
3. Catecismo para os pobres e os ricos
O evangelho de Lucas salienta a forte divisão socioeconômica entre pobres e ricos, o que fica evidente no acréscimo das quatro maldições aos ricos às bem-aventuranças dos pobres. Há nesse evangelho outros textos exclusivos, que advertem e convidam os pobres e os ricos a aderirem às bem-aventuranças: justiça, compaixão, solidariedade e partilha, características do reinado do Deus da vida. É Deus que vem ao encontro das pessoas que passam fome e padecem com tantos outros sofrimentos.
1. “E se emprestais àqueles de quem esperais receber, que graça alcançais? Até mesmo os pecadores emprestam aos pecadores para receberem o equivalente. Muito pelo contrário, amais vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, pois ele é bom para com os ingratos e com os maus” (Lc 6,34-35). Lc 6,27-38 é a continuação das quatro maldições aos ricos (Lc 6,24-26). Possivelmente, os destinatários deste trecho são os ricos, chamados a superar os valores da sociedade patronal: a doutrina e a teologia da retribuição. Eles devem amar “seus Inimigos”, nome atribuído aos pobres, famintos, mendigos no mundo greco-romano daquele tempo.
2. “E eu vos digo: fazei amigos com o Dinheiro da iniquidade, a fim de que, no dia em que faltar o dinheiro, estes vos recebam nas tendas eternas” (Lc 16,9-12). O termo “dinheiro” em grego se diz Mamon, deus das riquezas. O “Dinheiro” é iníquo enquanto fonte de riqueza acumulada de maneira injusta. Ou seja, acumular o dinheiro na mordomia e no luxo sem se preocupar com os necessitados. “Fazer amigos com o Dinheiro”, então, é uma prática oposta: partilhar as riquezas com os necessitados.
3. “Quando Jesus chegou ao lugar, levantou os olhos e disse-lhe: ‘Zaqueu, desce depressa, pois hoje devo ficar em tua casa’ [...] Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: ‘Senhor, eis que dou a metade de meus bens aos pobres, e se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo’. Jesus lhe disse: ‘Hoje a salvação entrou nesta casa, porque ele também é um filho de Abraão. Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido’” (Lc 19,5.8-10). Zaqueu trabalha em Jericó, cidade situada no vale do Jordão, que se torna, por ter água abundante, uma parada obrigatória para os peregrinos a Jerusalém e os comerciantes para os países do sudeste. Nessa cidade, Zaqueu se enriquece por fiscalizar e cobrar impostos e, em muitas ocasiões, defraudar pagantes. Uma riqueza empregada assim é injusta. Ele se torna justo por manifestar sua conversão (receber Jesus), partilhar sua riqueza com os pobres e restituir a quem tenha defraudado. É reparar as injustiças pelas quais se enriqueceu. Na verdadeira conversão, os ricos são convidados a não acumular.
Com base nesses textos exclusivos do Evangelho de Lucas, percebe-se a dura realidade da divisão socioeconômica entre os pobres e os ricos do mundo greco-romano da Ásia menor e da Grécia. Os textos desafiam e convidam os ricos e os pobres para fazer uma mudança radical: usar os bens em favor da vida e restabelecer as relações de justiça social. É um apelo de conversão desafiadora para todos e todas!
Como a história de Zaqueu, muito rico e chefe dos cobradores de impostos (Lc 19,1-10), a conversão também atinge o conceito da “salvação”, a “vida eterna”: Jesus lhe disse: “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque ele também é um filho de Abraão. Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,9-10). A salvação começa aqui neste mundo. O reino de Deus inaugurado pela prática de Jesus de Nazaré se enraíza na vida cotidiana: a partilha dos bens e as relações humanas, fraternas e justas das pessoas.
Segundo os evangelhos interpretados dentro do contexto socioeconômico, Jesus quer atingir e transformar as pessoas para que assim as estruturas injustas da sociedade possam ser transformadas. Os seus seguidores e seguidoras devem participar da vida eterna presente na prática da compaixão, solidariedade e justiça. Quem, por amor, segue Jesus Cristo, vive e participa na vida divina e eterna.
4. Uma palavra final
Mesmo acampada, Paula diz que incentivará a filha a ir à aula. “Queria dar continuidade, para ela aproveitar esse prazer que ela tem.” A família não tem planos de sair tão cedo do acampamento, até porque não tem para onde ir. Desempregados, a mãe e o pai vivem com os R$ 620 reais, do seguro-desemprego dela, o que não dá para pagar aluguel e se sustentar. Paula, auxiliar de cozinha, desempregada, concluiu o segundo grau. O sonho dela é que a filha faça curso superior. “Ela quer ser médica. Já tem o próprio sonho dela, vive dizendo: ‘Mãe, quando eu virar médica, vou te dar uma casa e um carro’”.
A “bem-aventurança” significa bem mais do que a mensagem evoca: uma esperança eterna após a morte. Ela se enraíza na vida concreta. Todas as pessoas têm o direito à vida digna. Porém, na realidade de ontem e hoje há muitos famintos, aflitos e perseguidos. Muitas Júlias, Paulas e outras.
Hoje no Brasil temos 60 milhões de pobres (outras fontes indicam “apenas” 30 milhões) e outros tantos milhões abaixo da linha de indigência. Por fim, o dado mais agravante: 1% da população concentra fortuna equivalente ao rendimento dos 50% mais pobres da população.
Uma pessoa pode ser feliz com a riqueza farta enquanto milhares de pessoas dormem com fome? Quem só pensa em si mesmo com a acumulação e luxo da sociedade consumista não colocará nenhuma pedra na construção do reino de Jesus Cristo.