2. A meditação: ruminar, dialoga, atualizar. A leitura respondeu à pergunta: "O que diz o texto? A meditação vai responder à pergunta: "O que diz o texto para mim, para nós? A questão central que se coloca daqui para a frente é esta: o que é que Deus, através desse texto, tem a dizer hoje, aqui na América Latina, a nós, religiosos que para obedecer a voz do Evangelho consagramos nossa vida a Deus e ao povo? A meditação indica o esforço que se faz para atualizar o texto e trazê-lo para dentro do horizonte de nossa vida e realidade, tanto pessoal quanto social. Dentro da dinâmica da Lectio Divina a meditação ocupa um lugar central.
Guigo dizia: "A Meditação é uma diligente atividade da mente que, com a ajuda da própria razão, procura o conhecimento da verdade oculta. Qual é esta verdade oculta? Através da leitura descobrimos como o texto situava-se no contexto daquela época. Qual a posição que tomava nos conflitos, qual a mensagem que tinha para o povo. De lá para cá a situação mudou, o contexto é outro, os conflitos são diferentes. No entanto, a fé nos diz que esse texto apesar de ser de outra época e de outro contexto, tem algo a nos dizer hoje. Nele deve existir um valor permanente que quer produzir no presente a mesma conversão ou mudança que produziu naquele tempo. Ora, a verdade oculta de que falava Guigo é este valor permanente, esta mensagem que lá existe para o nosso contexto e que deve ser descoberta e atualizada pela meditação”. Como fazer a meditação?
Uma primeira forma de se realizar a meditação é sugeri da pelo próprio Guigo. Ele manda usar a mente e a razão para poder descobrir a "verdade oculta". Entra-se em dialogo com o texto, com Deus, fazendo perguntas que obrigam a usar a razão e que procuram trazer o texto para dentro do horizonte da nossa vida.
Medita-se refletindo, interrogando: o que há de semelhante e de diferente entre a situação do texto e a nossa de hoje? Quais os conflitos de ontem que existem hoje? Quais dentre eles são diferentes? O que a mensagem deste texto diz para a nossa situação? Que mudança de comportamento ele sugere para mim que vivo na América latina? E para nós, religiosos, em que ponto ele nos condena? O que ele quer fazer crescer em mim, em nós? etc.
Outra maneira de se fazer a meditação é repetir o texto, ruminá-lo, mastigá-lo até descobrir o que ele tem a nos dizer. É o que Maria fazia quando ruminava as coisas em seu coração (Lc 2,19.51). E o que recomenda o salmo ao justo: "Meditar dia e noite na lei do Senhor" (Sl 1,2). E o que Isaías define com tanta precisão: "Sim, Iahweh, o teu nome e a lembrança de Ti resumem todo o desejo da nossa alma" (Is 26,8).
Após ter feito a leitura e ter descoberto o seu sentido para nós é bom procurar resumir tudo numa frase, de preferência do próprio texto bíblico, para ser levada conosco na memória e ser repetida e mastigada durante o dia, até se misturar com o nosso próprio ser. Através dessa ruminação, nós nos colocamos sob o julgamento da Palavra de Deus e deixamos que ela nos penetre, como espada de dois gumes (Hb 4,12), pois água mole em pedra dura tanto bate até que fura! Ela vai julgando as disposições e intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas (Hb 4,12-13). Nós, religiosos, nos escondemos atrás de mascaras e ídolos, ideologias e convenções, doutrinas repetidas e tradições humanas (cf Mc 7,8-13).
Pela meditação ou ruminação, a Palavra de Deus vai entrando aos poucos, vai tirando as máscaras, vai revelando e quebrando a alienação em que vivemos, devolvendo-nos a nós mesmos, para que nos tomemos uma expressão viva da palavra ouvida, meditada e ruminada.
Cassiano aponta outro aspecto importante da meditação, como conseqüência da ruminação. Ele diz: Instruídos por aquilo que nós mesmos sentimos, Já não percebemos o texto como algo que só ouvimos, mas sim como algo que experimentamos e tocamos com nossas mãos; não como uma historia estranha e inaudita, mas como algo que damos à luz desde o mais profundo do nosso coração como se fossem sentimentos que formam parte do nosso próprio ser. Respeitamo-lo: não é a leitura que nos faz penetrar no sentido das palavras, mas sim. a própria experiência nossa adquirida anteriormente na vida de cada dia" (Collationes X, 11). Aqui já nem parece haver mais diferença entre Bíblia e vida, entre a Palavra de Deus e a nossa palavra. Ora, conforme Cassiano, é nesta quase identificação nossa com a palavra da Bíblia que está o segredo da percepção tio sentido que a Bíblia tem para nós. Cassiano diz que a percepção do sentido do texto não vem do estudo, mas da experiência que nós mesmos temos da vida. O estudo coloca os fios, a experiência adquirida gera a força, a meditação aperta o botão, faz a força correr pelos fios e acende a lâmpada do texto. Tanto o fio como a força, ambos são necessários para que haja luz. A vida ilumina o texto, o texto ilumina a vida.
A meditação também aprofunda a dimensão pessoal da Palavra de Deus. Uma palavra tem valor não só pela idéia que comunica, mas também pela pessoa que a pronuncia e pela maneira como é pronunciada. Na Bíblia, quem nos dirige a Palavra é Deus, e ele o faz com muito amor. Uma palavra de amor desperta forças, libera energias, recria a pessoa. Meditando a Palavra de Deus, o coração humano se dilata até adquirir a dimensão do próprio Deus, que pronuncia a Palavra. Aqui aparece a dimensão mística da Lectio divina. Um lavrador de Pernambuco dizia: "Fui notando que se a gente vai deixando a palavra de Deus entrar dentro da gente, a gente vai se divinizando. Assim, ela vai tomando conta da gente e a gente não consegue mais separar o que é de Deus e o que é da gente. Nem sabe muito bem o que é Palavra dele e palavra da gente. A Bíblia fez isso em mim". (por trás da Palavra n.46).
Pela leitura se atinge a casca da letra e se tenta atravessá-la para, na meditação, atingir o fruto do espírito (S. Jerônimo). O Espírito age dentro da escritura (2Tm 3,16). Através da meditação, ele se comunica a nós, nos inspira, cria em nós os sentimentos de Jesus Cristo (Ef 2,5), ajuda-nos a descobrir o sentido pleno das palavras de Jesus (Jo 16,13), faz experimentar que sem Ele nada podemos fazer (Jo 15,5), ora em nós com gemidos inefáveis (Rm 8,26) e gera em nos a liberdade (2Cor 3,17). E o mesmo Espírito que enche a vastidão da terra (Sl 1,7). No passado, ele animava os Juízos e os Profetas. No presente, ele nos ajuda a descobrir o sentido profético da história do nosso povo, que se organiza e luta por uma sociedade mais justa. A meditação nos ajuda a descobrir o sentido espiritual, isto é, o sentido que o Espírito de Deus quer comunicar hoje à sua Igreja através do texto da Bíblia.
A meditação é uma atividade pessoal e também comunitária. A partilha do que cada um sente, descobre e assume no contato com a Palavra de Deus é muito mais do que só a soma das palavras de cada um. A busca em comum faz aparecer o sentido eclesial da Bíblia e fortalece em todos o sentido comum da fé. Por isso é tão importante que a Bíblia seja lida, meditada, estudada e rezada não só individualmente, mas também e sobretudo em comum. Pois trata-se do livro de cabeceira da Igreja, da Comunidade.
Qual o momento de se passar da meditação para a oração? Não é fácil dizer quando, exatamente, uma pessoa passa da juventude para a idade adulta. Mas existem alguns critérios. A meditação atualiza o sentido do texto até ficar claro o que Deus está pedindo de nós, religiosos, que vivemos aqui na América Latina. Ora, quando fica claro que Deus pede, está chegando o momento de se perguntar: "E agora, o que vou dizer a Deus? Assumo ou não assumo?" Quando fica claro o que Deus pede, fica clara também a nossa incapacidade e a nossa falta de recursos. E o momento da súplica: "Senhor, levanta-te! Socorre-nos" (Sl 44,27). Quando fica claro que Deus nos interpela através do irmão explorado e necessitado e que Fiel ouve o grito dos pobres, está chegando o momento de unir nossa voz ao grito dos pobres, para que Deus, finalmente, ouça o seu grito e venha libertar o seu povo. Com outras palavras, a meditação é semente de oração. Basta praticá-la e ela, por si mesma, se transforma em oração.