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19 A casa não cai (Genesis 6-9)
19 A casa não cai (Genesis 6-9)

Estes capítulos 6-9 são também os mais longos, detalhados e, diria, surpreendentes. Por isso, tudo recomenda começar por aí, na leitura o livro do geneis. Eles são, pois, o núcleo. Não convém, portanto, centrar o foco em Gênesis 1-3, como costuma ocorrer. Seu centro não reside aí, nestes primeiros capítulos. Seu ponto-chave está em seu centro, nos capítulos que narram o dilúvio.

 

Uma grande composição: Existem subdivisões diversas destes nossos capítulos. Há quem não inclua o início do cap. 6 (v. 1-4) e que exclua o capo 9.  Em nosso entendimento, todos os conteúdos dos caps. 6-9 se correlacionam. Os primeiros versículos do capítulo 6 (v. 1-4) correspondem, de maneira clara, ao fim do cap. 9, aos V. 18-29. Nas duas unidades, a sexualidade desempenha papel de destaque.

 

No restante do cap 6, lê-se a respeito da decisão de Deus pelo dilúvio e pelo resgate de Noé (v. 5-22). A esta parte corresponde o final do cap 8 e o cap 9, a promessa divina de não repetir as águas (8,20 até 9,17).

 

Os caps. 7-8 compõem o centro da história. Narram os preparativos para a entrada na arca e para a saída. Estas duas partes se correlacionam nitidamente. Trata-se de 7,1-16 e de 8,1-19. Entre  estas duas partes, situa-se a catástrofe. A ela se refere 7,17-24. Surpreende que não se insista em detalhes das consequências do  dilúvio.

 

Vemos, pois, que os diversos conteúdos dos caps. 6-9 estão claramente inter-relacionados. Conformam um grande conjunto, bem estruturado. As diversas partes se justapõem de modo perceptível. Complementam-se.

 

Uma composição tão complexa e abrangente não surge de  uma vez. É obra de muitas gerações.

 

Uma obra de gerações e de povos:  Não estamos diante de uma obra do momento, nem de uma  ou duas pessoas. Podemos percebê-lo sem grandes dificuldades.

 

Ora veja, por um lado Noé é mandado a levar para a arca dois animais "de cada espécie, um macho e uma fêmea" (6,19). Mas, por outro lado, a ordem é levar sete pares de todo animal limpo (7,2). Também 7,11 e 7,12 não se ajustam muito bem. Em 7,11, o dilúvio resulta da ruptura de "todas as fontes do grande abismo e abriram-se as comportas do céu". Em 7,12, a questão já é outra; aí o dilúvio provém de uma copiosa chuva.

 

Além dessas, há ainda outros indícios que apontam origens diversas de nossos capítulos. Pensemos, por exemplo, em 6,1-4,  neste conto fragmentado da origem dos "gigantes", dos "homens  famosos" (v. 4). Estes poucos versículos estão na faixa do mito. Ao  certo não sabemos de onde provêm.

 

Depois temos aí presente a profecia. Ora, a referência à "violência" (6,11.13) poderia provir de Amós (3,9-10). A justiça constatada em Noé igualmente remete à profecia. Sim, a própria estrutura da unidade (culpa-ameaça-promessa) segue a lógica profética.

 

Também se poderia apontar a cena da pomba (8,6-12). Ela  por certo está integrada ao todo. Mas também se pode notar que  tem sua especificidade. De onde provém?

 

Estas poucas notas já nos fazem perceber que estamos diante de uma obra de muitas gerações, inclusive de diferentes lugares. Esta intuição se vê plenamente confirmada, quando olhamos para outros povos. A rigor, todos têm a tradição do dilúvio.

 

Está presente em todos os continentes. Há muito o sabemos. Em  resumo, Gênesis 6-9 nasceram de um grande mutirão. É um mutirão de muitas gerações e de muitos povos.

 

Estamos no exílio: A datação de Gênesis 6-9 é um tanto complicada. O problema principal está em que estes quatro (!) capítulos são obra de várias gerações. Afinal, dilúvio é um tema universal. Dele se  conta no Brasil, na Babilônia, na África! De quando seriam nossos caps. 6-9?

 

O cap 9, para mencionar um exemplo, aponta para o exílio, em especial no que se refere à aliança-promessa (v. 8-17). Esta temática é típica dos tempos exílicos, como se vê também em Gênesis 17 e Êxodo 6.

 

Mas, há um interessante argumento a mais: a narração antiga dos perigos de destruição cósmica a rigor não é o dilúvio. É a narração de Sodoma e Gomorra (em Gênesis 18-19). Gênesis 6-9  veio para substituir a esta, mais antiga!

 

Uma narração de escravos e de escravas! Os deportados e as deportadas para a Babilônia são quem fizeram esta narrativa do dilúvio! Em 597 e 587 a.C, umas 15 mil  pessoas de Jerusalém, a capital de Judá portanto as elites de Jerusalém, foram deportadas para a Babilônia, para viverem junto a  lugares ermos, um deles chamado de Tel Abib. "Às margens dos  rios da Babilônia" (Salmo 137,1) foram feitos trabalhadores forçados. Trabalhavam duro para poder sobreviver e entregar os tributos exigidos pelo império babilônico.

 

Há que atribuir os caps. 6-9 a exilados escravizados, a escravas exiladas, originários de Jerusalém! Os 'autores' eram ex-elite (quando ainda estavam em Jerusalém), mas agora eram escravos! Esta tensão ajuda a entender nosso grande conjunto de quatro capítulos. Assim também passamos a entender por que  nosso dilúvio tem tantos capítulos.

 

Afinal, nele está reunido um saber significativo e qualificado. Para poder elaborar um texto dessa extensão e dessa profundidade, necessita-se de muita informação e de uma boa dose de habilidade em criação cultural e literária. Uma história tão longa não surge num repente. Tem em sua base um exercício de saber e de intelectual idade. Tinham-no os deportados, pois, quando ainda estavam em Jerusalém, já eram conhecedores dos conteúdos. Desde os assírios do 8º século, a elite de Jerusalém estava em contato com as tradições religiosas mesopotâmicas. Conhecia, pois, os discursos  mesopotâmicos a respeito das águas, do firmamento e do dilúvio (veja, por exemplo, Isaías 8,5-6). Portanto, estamos num bom caminho, se localizarmos a história do dilúvio junto aos sofridos e às deportadas.

 

Nossos quatro capítulos são, pois, gemidos sábios, gritos inteligentes, perspicácia teológica de pessoas massacradas por um império. Para entender o dilúvio, faz-se, pois, necessário situá-lo no conflito e confronto entre um império e sua gente súdita extraviada e espoliada.

 

Avancemos, pois, para os significados principais!

 

Um contra-conto: Logo de início uma questão precisa ser clareada, pois tem  papel quase decisivo na interpretação. Nós podemos comparar o dilúvio bíblico com o mesopotâmico. E é bom que o façamos. Daí  se pode deduzir interessantes diferenças e semelhanças. O vasto material à disposição, tanto de origem mesopotâmica quanto do  mundo inteiro, até convida a este tipo de estudo.

 

O que não se pode esquecer é que esta comparação ainda não perfila o sentido da narrativa bíblica do dilúvio. E a razão é muito simples. Os textos babilônicos provêm dos setores dominantes. Falam a linguagem e pronunciam os interesses do império. A história bíblica, ao contrário, vem do reverso deste mesmo  império. Representa a fala e os interesses de escravos e escravas que tinham de suar o suor de gente trabalhadora para manter as glórias do estado dominante. Isto perfaz a pequena/grande diferença que tem de ser levada em conta na comparação. De outro  modo fabrica-se confusão na interpretação.

 

Feita esta ressalva, pode-se passar a constatar que uma tradição como a do dilúvio certamente não teve seu berço na Palestina. Não corresponde em nada à cultura palestinense. Aí chuva nenhuma representa perigo. Ela é tão rara e tão desejada que seria um contrassenso temê-la.O ambiente palestinense também  não conhece enchentes regulares que a rigor constituem o pano  de fundo e o pressuposto cultural de uma narrativa como a do  dilúvio. O que corresponde ao mundo palestinense não é a destruição por água, mas por fogo, como se lê em Gênesis 19. O fogo é o perigo porque representa o estágio final da seca. Esta sim é  uma contínua ameaça à vida, nas secas montanhas das terras de  Israel.

 

Conclui-se daí que Gênesis 6-9 trabalham com elementos culturais importados; pensando no caso da relação de Israel/Judá e da Assíria/Babilônia se deverá dizer: impostos. Foram os assírios e babilônios que, por meio de sua influência na região, foram  tornando conhecida a narração do dilúvio. Difundiram na, por exemplo, por meio do templo de Jerusalém que mantiveram literalmente ocupado, na primeira metade do 7º século. Os exilados sabiam dessas tradições culturais importadas. Uma vez "às margens dos rios da Babilônia" viram-se ainda mais desafiados pela imposição da cultura babilônica. Trataram de reagir. Ora, Gênesis 6-9 são a reação palestinense, no concreto dos deportados, contra a imposição religiosa e política implícita no mito babilônico.

 

A narração bíblica do dilúvio é, portanto, uma contra-história, um contra-conto. Articula-se na linguagem dos senhores do poder, para dizer o inverso, por dizê-lo desde o reverso. Para dizer a sua palavra própria, a gente palestinense teve de valer-se de um discurso alheio, uma vez, porque o poder coercitivo do império era vigoroso, outra vez, porque nem tinha uma tradição similar a contrapor, por viver nas montanhas e não na planície,  que é o "lugar vivencial" de nossa narrativa.

 

Agora, podemos tratar de identificar melhor em que sentido estamos lidando com um contra-conto. Em que reside propriamente sua crítica?

 

O império do medo: No império, a história do dilúvio tinha várias funções. Em parte, era um mito de origem da dinastia no poder, pois o soberano no comando dizia-se descendente daquele sobrevivente do  dilúvio. Além desta tinha outras funções mais.

 

Mais relevante que perseguir tais particularidades parece-me ser localizar o dilúvio na cosmovisão geral da Mesopotâmia. Afinal, esta catástrofe não é um episódio qualquer, mas cósmico, total.

 

Para a cosmovisão mesopotâmica, presente também em  outros povos circunvizinhos, à medida que os alcançasse a dominação assírio-babilônica, a terra estaria rodeada de água por todos os lados. Abaixo da terra haveria água, de sorte que esta como que flutuaria sobre abismos de mares. Sobre o firmamento haveria água. É o que podemos ler em Gênesis 1,6-8. O firmamento é, propriamente, aquilo que viabiliza a vida aqui na terra. Rompendo-se este, a criação volta ao caos (Gênesis 1,2).

 

Esta ameaça é muito real e cotidiana. E isso se deve à  existência de aberturas, de "comportas nos céus", neste 'firmamento' pouco firme. Caso estas se abram ou rompam, a terra  ficará inundada.

 

O império se auto-apresenta como garantidor do 'firmamento'. Assume a tarefa de manter fechadas as comportas. A função do culto é manter este 'firmamento', acalmando as divindades com templos e sacrifícios. As torres e as zigurates têm esta função precisa: levar os sacrifícios para bem perto das divindades do céu, sol e lua, a fim de que estes mantenham o cosmo, deixem fechadas as comportas.

 

Enquanto o culto imperial funcionasse, o perigo de dilúvio estaria afastado. A crise deste culto deixaria irritados os deuses, o que poderia trazer o dilúvio, as enchentes, as catástrofes. Sendo assim, quem contestasse o imperador, quem deixasse de participar do culto, quem 'esquecesse' de pagar seus tributos, ameaçava a irrupção do caos, o aniquilamento da ordem da natureza. A ordem política imperial era, simultaneamente, a ordem natural e cósmica. Rebelar-se contra o império implicava rebelião contra a natureza.

 

império se mantinha, pois, mediante o medo. Este era efetivado, no dia-a-dia, pelo exército, pela coerção bruta. Mas ele se estabilizava e eternizava por meio do próprio culto, da  religião que dizia exorcizar o medo, enquanto o mantinha de fato, já que a desordem, a rebelião e o descaso ao culto poderiam causar a destruição.

 

O exército e o culto sacrificial garantiam a superação do medo pelo medo.  E Gênesis 6-9?

 

Não!  Caminho bem diferente propõe Gênesis 6-9. Nega a via imperial. Não adere à lógica mesopotâmica.

 

Entretanto, no começo, a narração até parece querer seguir os propósitos do império. A destruição deve-se ao caos social reinante. Afirmam-no claramente os primeiros versículos do capítulo 6. Aí estão os filhos dos deuses criando grande confusão ao se engraçarem com as belas filhas dos homens. Pior que  isso: dessa união nasceram "gigantes", "valentes", "guerreiros"  (6,1-4). Tamanho caos só mesmo poderia ser enfrentado com um  dilúvio.

 

"Maldade", "perversão" e "violência" reinavam em toda parte (6,5.11-13). A resposta a isso é a catástrofe: "Farei desaparecer da face da terra a humanidade que criei" (6,7).

 

A constatação que sintetiza tamanha corrupção afirma que "era continuamente mau todo desígnio do coração humano" (6,5).  O dilúvio é, pois, necessário e justo.

 

Até este ponto, a história bíblica segue visivelmente ao que também era afirmação do império. É  possível que a Bíblia até radicalize, pois ao império não era muito interessante afirmar que o desígnio do coração humano era continuamente mau. Respeitada esta diferença, no início o texto não se afasta do roteiro oficial.

 

A surpresa está no fim! Vê-se aí que os portadores do texto sabiam contar, comunicar-se. Aí, no fim, afirmam: nunca mais  haverá dilúvio. E o motivo é exatamente aquele que dera origem  à catástrofe: é mau o desígnio íntimo da pessoa desde a sua mocidade (8,21). Isso implica que "violência", "perversão' "maldade" continuarão a existir. Mas, agora, se sabe que o dilúvio, esta  ideologia de segurança imperial babilônica, não trará solução. O  império não soluciona o problema de "violência", "maldade" e  "perversão"! Antes, o império é diário gerador de violência, como  o dizem os profetas! Neste sentido, a narração bíblica do dilúvio  é um verdadeiro contra-conto.

 

O próprio texto explicita alguns aspectos dessa violência que não está eliminada. Podem ser encontrados em 9,1-7.18-29. Aí se fala de violência em vários níveis: a agressão de animal contra animal (v. 5), de pessoa contra pessoa (v. 5-6), das pessoas contra os animais (v. 2-4), o desrespeito aos tabus sexuais (v. 18-29). Por terríveis e múltiplas que sejam as agressões, destruições e violências (quase piores do que as que estão mencionadas no capo 6!),  há a promessa do Senhor: "Não haverá mais dilúvio" (9,11). E esta promessa vai acompanhada de grande certeza, de sorte que é confirmada por um memorial, o do arco-íris.

 

Efetivamente, o medo de dilúvio e império está pôr terra.  E o que a narração propõe como solução?

 

A casa do justo! Também aqui o objetivo se configura na categoria da casa. Vários indícios o assinalam.  A arca abriga uma família, o núcleo de um clã: "Entrarás na  arca, tu e teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos"  (6,18). Esta expressão se repete por várias vezes. Em 7,1 até se lê que a arca reúne uma "casa". É a casa sobre os mares.

 

Também o cuidado com os animais aponta para o sentido de casa, pois estes eram parte de uma casa israelita naqueles tempos. A relação com os animais recebe destaque especial em 9,1-7, em continuidade a Gênesis 1,26-30.

 

Não por último o sacrifício oferecido por Noé, como representante do clã, remete para a família (8,20). Em sociedades clânico-familiais, o representante do grupo costumava realizar o sacrifício, como no caso de Abraão (Gênesis 12,7; 22).

 

Essa casa é casa de lavrador junto à terra e aos animais. A realidade agrícola é pressuposta como óbvia. A família é circundada pelos animais. Quando a história fala de "terra", a rigor só se refere ao mundo da agricultura. O deserto nem está em sua perspectiva.

 

À situação do roceiro corresponde a promessa do Senhor: "Não deixará de haver sementeira e ceifa" (8,22). Sim, em 9,20 Noé é, expressamente, designado "lavrador". Portanto, não resta dúvida: a história visa a casa do lavrador. Esta é a expressão concreta do projeto.

 

Esse mundo do camponês é qualificado. Os critérios da casa estão em 6,9. São três: justiça, integridade e andar com Deus. Estes critérios estão fortemente marcados pela profecia. Lembram uma frase de Miquéias 6,8: o Senhor pede de ti "que pratiques a  justiça e ames a misericórdia e andes  humildemente com o teu  Deus". Além da profecia, os critérios também estão sob a influência da sabedoria e do saltério. Noé se assemelha a um modelo, ao crente padrão.

 

Este Noé, justo, reto e crente, representa o resto santo. Nossa história entende que este resto santo está na roça. Não está no templo e muito menos no palácio. Penso que nestes acentos Gênesis 6-9 continuam e complementam Gênesis 1. Mas há um aspecto a mais, no qual nossa história dá um significativo passo à  frente em relação a Gênesis 1.

 

Ambiguidades: O grande avanço de nosso contra-conto reside na superação decidida da religião do medo. Gente pobre e escrava não precisa ter medo do império, porque suas ameaças são infundadas. São pura mentira;impérios são mentira! Pois o Deus da gente empobrecida manterá o cosmo. O Senhor libertador é a garantia de sua indestrutibilidade.

 

Eliminado o império, tudo se passa a decidir no nível do clã, da família, da casa, do resto santo profético-camponês. Importa  que se observe atentamente o que a narração diz sobre o clã, sobre a casa. Não a vê como algo ideal. Não transpõe a família para nenhum espaço idílico, romântico, isento de conflitos e tensões. Pelo contrário, para a história do dilúvio a família é uma instituição deveras frágil, exposta a múltiplas agressões. O texto admite expressamente estas insuficiências. Mas, apesar disso, confia nas possibilidades da casa para ir superando e mantendo sob controle os impasses que forem surgindo.

 

O final da história do dilúvio dá ênfase especial às debilidades do clã. Começa por ressaltar que "o desígnio íntimo da pessoa é  mau" (8,20). É, portanto, fonte de maldade, violência e corrupção.

 

Depois destaca a agressividade humana contra os animais.  As pessoas são quais matadores. Difundem "pavor e medo" entre os animais. Transformam a estes que foram criados no mesmo dia, que são irmãos, em alimento (9,2-4).

 

A violência do ser humano contra os animais tem seu paralelo na agressão de uns contra os outros, de pessoa contra pessoa  (9,5-6).

 

Nem mesmo a relação de pais e filhos está isenta da corrupção. Esta é a ênfase da cena final do dilúvio (9,18-29). Um dos  filhos de Noé infringe um dos severos tabus sexuais em Israel: vê  "a nudez do pai" (9,22). Trata-se de uma grave transgressão no âmbito da família. A sexualidade dos parentes da família era tabu.  Tinha de estar acobertada (veja Levítico 18).

 

Todas as fragilidades do âmbito familiar não são negadas. A casa não é um espaço de plena harmonia. Mas para todas elas há chance de solução, sem a intervenção do império. A cura das  enfermidades sociais familiares está na própria casa.

 

O mau desígnio do coração (8,20) o Senhor mesmo põe sob  sua proteção. Ao uso dos animais como alimento, é imposto um  limite: "Carne com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis" (9,4). Esta regra mantém viva a memória de que somos próximos dos animais. Também eles têm vida. Matá-los é agressão a  nós mesmos.

 

A agressão de pessoa contra pessoa será punida, sem que  para talo império tenha de intervir. Os próprios clãs têm jurisprudência para tal (9,5-6).

 

A família até mesmo tem defesa contra quem transgride tabus sexuais. Para tal a autoridade do pai é suficiente (9,18-29).

 

A narração do dilúvio propõe a casa como solução. Mas não idealiza esta sua solução. Vê-a em suas ambiguidades e na luta com suas tensões, insuficiências e debilidades. Esta é um das grandes conquistas evangélicas da história do dilúvio. Não é  simplista!

 

Os caps. 6-9, no centro de Gênesis 1-11, certamente se encontram na continuidade do cap. 1.