História do Decálogo: Numa primeira leitura do Êxodo nos parece que foi tudo assim tão simples. O povo hebreu saiu do Egito e passou pelo Mar Vermelho (Ex 14), entrou no deserto, onde permaneceu por quarenta anos (Ex 16ss) e lá fez aliança com Javé (Ex 19-24) e nesta aliança, Deus entregou os Dez Mandamentos diretamente a Moisés (Ex 20,1ss). Precisamos, no entanto, alertar que os livros bíblicos como o Êxodo e também o Deuteronômio, tais quais os temos hoje na Bíblia, foram por muito tempo, apenas tradição oral, contada de pais para filhos e de filhos para netos. A redação dos livros do Pentateuco (Gn, Ex, Lv, Nm e Dt) só se deu vários séculos depois do fato do Êxodo. Por isto mesmo, nem tudo deve ser lido como se fosse exatamente daquela época. Diríamos antes, o Decálogo tem sua origem nos povos primitivos, mas foi evoluindo por séculos na tradição oral até se formar a redação atual em nossas Bíblias. Por isto, ao ler hoje os textos de Ex 20,2-17 e Dt 5,6-21 encontramos muitas camadas literárias. Algumas coisas refletem tempos antigos, outras vêm de tempos posteriores. Por exemplo, o mandamento do sábado (Ex 20,8-11) bem como o mandamento do não cobiçar (Ex 20,17) fala dos escravos, de casas, de animais, bois, jumentos e de imigrantes. Ora, os escravos libertos do Egito, quando foram para o deserto não tinham casas, nem escravos e entre eles não tinham imigrantes. Moravam em tendas e talvez tivessem pequenos animais, mas bois e jumentos, ao menos parece que não tinham, pois não seria possível mantê-los no deserto. Alguns biblistas julgam que na época do Êxodo (1250 a.C) os povos da região ainda nem conheciam o gado bovino. Este teria sido introduzido alguns séculos mais tarde. Logo, estas explicações não vêm dos tempos da Aliança, mas sim, do século oitavo ou sétimo antes de Cristo, quando o povo já estava estabelecido em Israel e possuía escravos, animais e imigrantes.
Algumas coisas que estão no Decálogo refletem os tempos da redação final do texto. Isto deve ter se dado durante o Exílio da Babilônia (por volta de 550 a.C.), ou logo depois. Talvez, no Exílio da Babilônia o povo fizesse o seguinte raciocínio: "Uma vez fomos escravos do Egito e Javé nos tirou de lá com mão forte. Se agora, na Babilônia, observarmos os mandamentos de Javé, ele nos libertará novamente". Assim sendo, se fez a redação final dos textos que hoje conhecemos.
Chave de leitura: Para entendermos o verdadeiro sentido da interpretação dos mandamentos precisamos levar em conta o primeiro versículo dos mesmos. Em Ex 20,2, bem como em Dt 5,6 se lê: "Eu sou Javé seu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da escravidão". Sem esta frase, os Dez Mandamentos perdem seu objetivo e seu sentido. Num primeiro momento podemos, de fato, pensar na escravidão do Egito, de onde os hebreus foram libertos por Javé, pela coordenação de Moisés, de Míriam, de Aarão e de outros líderes. Porém, na história de Israel sempre houve opressões, das quais o povo precisava se libertar. O Egito virou símbolo de opressão. Com a instalação da monarquia em Israel (1Sm 8,10ss), principalmente com Salomão (1R2 10,14ss e 1Rs11,1-8) a escravidão e a idolatria ganharam força. Também nos tempos do Exílio da Babilônia (589-538 a.C.) a escravidão e a idolatria se tornaram motivos fortes. Por isto mesmo, ter o Egito e sua opressão como pano de fundo era sempre um motivo para ilustrar todas as opressões que o povo sofreu. Então, a frase de Ex 20,2 serve de chave para todas as opressões que através da história se abateram sobre o povo hebreu.
Assim, com base na libertação do Egito, os hebreus foram moldando e completando um caminho de libertação. Este caminho de libertação são os Dez Mandamentos. Veremos em nossas dez lições, como cada mandamento quer ser um remédio que liberte da escravidão do Egito e de todas as escravidões que afligem o povo de Israel, por conseqüência, todas as escravidões que ainda hoje afligem o povo. Enfim, o Decálogo tem por objetivo, preservar a vida digna e livre do ser humano, o mesmo que Jesus fez com sua ação libertadora (Jo 10,10). O Decálogo é a garantia da liberdade.
Javé, o Deus da Vida: No Antigo Testamento muitas vezes encontramos o tema da idolatria ligado ao tema da escravidão e da opressão: 1Rs 21; Am 2,6ss; 3,13ss; 7,10ss; Is 16,7ss. O próprio Salomão, quando quis viver faustosamente às custas do povo (1Rs 10,14ss) trouxe para dentro de Israel a idolatria (1Rs 11,1ss). Muitos reis, através da história de Israel e de Judá, construíram lugares altos, ou seja, lugares de culto a ídolos: 1Rs 12,28ss; 1Rs 16,13ss; 1Rs 16,23ss; 1Rs 16,31ss; etc. O culto aos ídolos está diretamente ligado aos projetos políticos de opressão. Ou seja, os reis, para imporem seus projetos de opressão, usavam duas forças: as armas, o exército, o aparelho repressor do estado por um lado e a religião idolátrica, por outro. Com as religiões idolátricas se fazia a cabeça do povo. Dizia-se que o rei era o filho dos deuses. Obedecer ao rei era o mesmo que obedecer aos deuses. Aceitando tal doutrina, o povo já escravizado e explorado, aceitava a escravidão como vontade dos deuses. Além do mais, os diversos reis de Israel e de Judá, quando queriam oprimir o povo, além de buscar legitimação religiosa ou ideológica nos ídolos, conseguiam com isto apagar a memória libertadora de Javé, o Deus da vida, pois esta memória de um Deus que ouve o clamor dos pobres (Ex 3,7ss) era sempre perigosa para qualquer projeto político de exploração. Era preciso apagar da memória do povo todo e qualquer vestígio de Javé, Deus da vida, aquele do Êxodo. Pois, se os escravos, em meio ao seu sofrimento celebrassem a memória de Javé, sempre havia perigo de uma insurreição contra os poderosos. Os pobres diriam: como é que no passado Javé libertou os escravos e hoje não liberta? Será que ele mudou?
O/a leitor/a poderá verificar nos dois livros dos Reis a história dos soberanos de Israel e de Judá. Para a maioria dos reis se diz logo no início de cada história: "fez o que Javé reprova". Geralmente se trata de projetos políticos perversos e de idolatria. Como vemos, idolatria e projetos políticos desastrosos andam de mãos dadas. Todos os deuses servem a interesses. Só Javé é o Deus da vida que não se submete a ninguém, embora Salomão tenha submetido a religião javista, construindo um pomposo templo em Jerusalém e transformando os sacerdotes em funcionários do estado (1Rs 5 e 6), calando com isto as vozes javistas de reação.
Assim sendo, preservar os Dez Mandamentos é antes de tudo impedir que se pratique o culto idolátrico e ao mesmo tempo, que se implemente projetos políticos escravagistas e opressores. Javé é o Deus da vida. Ficar fiel a Javé é posicionar-se a favor da vida livre. É não permitir que falsas ideologias se instalem e legitimem novamente tais projetos.
Jesus e os Dez Mandamentos: Dizíamos acima que Jesus instaurou a Nova e Eterna Aliança (Lc 22,19-20) e que com esta Nova e Eterna Aliança ele superou a Antiga Aliança (Ef 2,15 e Hb 7,12). Isto, no entanto não quer dizer que aquilo que foi ensinado no Decálogo esteja abolido. Jesus mesmo viveu os Dez Mandamentos, mas não mais à maneira dos fariseus: a Lei pela Lei. Jesus resumiu tudo em duas leis: Amor a Deus e amor ao próximo (Mc 12,28-30). Ele cumpria Lei a partir do amor a Deus e do amor ao próximo. Tanto assim que, nos momentos oportunos transgrediu o mandamento do sábado: Mc 2,23-28; Mc 3,1-6; Jo 5,1ss; Jo 9,1ss. Assim também transgrediu outros mandamentos que se encontram no Pentateuco. Vejamos: Em Lv 15,19ss se diz que a mulher menstruada é impura e quem nela toca, se torna impuro. No entanto, Jesus se deixa tocar pela mulher com fluxo de sangue (Mc 5,25ss) e também pela prostituta (Lc 7,36ss). Em Lv 13,1ss se diz que o leproso deve ser retirado da convivência comunitária. Jesus toca no leproso (Mc 1,40ss). Em At 10,1ss se diz claramente que Pedro foi movido pelo Espírito Santo a não mais observar a questão do Lv 11. Alguém definiu Jesus como o grande transgressor do livro do Levítico.
No entanto, em outros momentos vemos Jesus fiel aos mandamentos. Ele colocou Deus em primeiro lugar (Mt 4,10 e Mc 12,28ss). Toda vida dele foi marcada pelo amor ao Deus único e verdadeiro. Encontramo-lo nas sinagogas aos sábados (Mc 3,1ss; Lc 4,16ss). Certamente honrava os pais, não matou, nem praticou a violência, não adulterou, nem furtou, etc. Ele recomenda ao homem rico a observância dos mandamentos (Mc 10,19ss), porém diz que isto ainda não é o suficiente (Mc 10,21). Em Mt 5,17ss Jesus diz que não veio revogar a Lei, mas dar-lhe pleno cumprimento, mas não à maneira dos fariseus (observância cega), mas sim, na forma do amor e da justiça. Jesus mostra que a nova forma de praticar a Lei é ainda mais profunda do que a antiga. A partir de Mt 5,20 Jesus nos diz: "Ouvistes o que foi dito aos antigos: não matarás...eu, porém vos digo: Todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, terá de responder em juízo". Assim Jesus retoma também os mandamentos do adultério (5,27ss), do divórcio (5,31), do jurar (5,33s), do olho por olho (5,38ss) e do amor ao próximo (5,43ss). Em todos estes mandamentos Jesus acrescenta: "Eu, porém, vos digo...". Ou seja, Jesus é muito mais radical do que a velha Lei. O que a velha Lei exigia legalmente, Jesus exige a partir do amor. Quem ama não pode matar, nem cometer adultério, roubar, etc. Não porque uma lei o proíba. O amor em Cristo não comporta estas coisas, pois quem ama em Cristo só pode fazer o bem.
Conclusão: Os Dez Mandamentos são indicativos para os discípulos de Jesus. O motivo que nos leva a cumprir e mesmo a estudá-los é o amor a Deus e ao próximo. Em outras palavras, quem ama a Deus se sente comprometido com a vida e para que a vida possa desabrochar em todas as suas potencialidades, para que homens, mulheres, bem como a natureza possam viver em paz, precisamos de mandamentos, ou seja, de setas que nos orientem. Os Dez Mandamentos apontam para o convívio harmônico, não apenas de uma forma romântica ou poética, mas real. Para que a vida floresça, é preciso compromisso. Deus quer homens e mulheres vivendo a verdadeira vida, cheia de sentido, cultivando os verdadeiros valores que tornam a vida uma festa de liberdade e de paz.
Bíbliografia
MESTERS, Carlos. Bíblia, livro da aliança - Êxodo 19-24. São Paulo: Paulinas, 1989
MESTERS, Carlos. Os Dez mandamentos - Ferramentas da comunidade.São Paulo: Paulus, 2008.
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da liberdade - o Decálogo numa perspectiva gistórico-social. São Leopoldo: Sinodal/Cebi, 2995