Dilúvio quer dizer enchente, inundação. Pela Bíblia (Gn 6-9) o dilúvio aconteceu e foi universal, isto é, envolveu o mundo inteiro. No dilúvio morreram todos os homens e animais, exceto os que estavam na arca de Noé. As causas do dilúvio foram a maldade e a depravação humanas. Com o dilúvio Deus castigou e purificou a humanidade; depois do dilúvio Deus fez com Noé uma nova aliança, simbolizada pelo arco-íris e disse que não mais castigaria o homem com novo dilúvio.
O relato do dilúvio é, na Bíblia, interpretação teológica de catástrofe acontecida e conhecida por todos os povos da antiguidade. Mais abaixo falaremos sobre essa interpretação teológica.
Historicamente todos os povos antigos conhecem uma tradição sobre dilúvio. Essas tradições existem tanto no mundo oriental (p. ex., na Palestina, na Babilônia, na Mesopotâmia), como também no mundo ocidental (p. ex., na América, na África). Todos os povos guardam na memória coletiva a lembrança de uma inundação catastrófica aconteci da em tempos imemoriais.
Na tradição mesopotâmica, principalmente, há uma narração sobre o herói de um dilúvio: é Utanapistim. Entre essa narração e a narração bíblica há muita semelhança literária e de conteúdo. O dilúvio é descrito, nessa narrativa, como universal (mas no sentido antropológico, isto é, atingiu todo o gênero humano); da destruição salvaram-se somente os homens e animais que estavam numa barca; a chuva parou depois de sete dias e a barca parou num monte também; o monte Nizir, no norte da Mesopotâmia. Utanapistim soltou uma pomba, a seguir uma andorinha e depois um corvo. As duas primeiras aves voltaram, o corvo não. Era sinal de que as águas haviam baixado; o corvo encontrara alimento na terra. O herói oferece então um sacrifício de ação de graças aos deuses.
Em todas as tradições orientais o dilúvio não é descrito como fenômeno natural, mas como castigo dos deuses; segundo tais tradições a humanidade descende dos sobreviventes que estavam na barca; a inundação aconteceu por causa das muitas chuvas ou por causa do mar revolto; e em todas essas tradições há - como se disse - a presença de pássaros que anunciam o fim do dilúvio.
Diante disso tudo, a narração bíblica parece sem novidade. Os pontos de contato entre a narração bíblica e a narração mesopotâmica são evidentes. Uma coisa fica bem clara: o dilúvio foi inundação imensa que de fato aconteceu.
Qual é então a diferença entre o relato bíblico e o relato mesopotâmico?
A originalidade da narração bíblica está na interpretação que ela dá ao fato. É o que se chama de interpretação teológica de um acontecimento.
E qual é a interpretação teológica da Bíblia sobre o dilúvio? O autor bíblico afirma, com seu texto, que o dilúvio aconteceu por causa da depravação humana e não por causa das desavenças entre os deuses, como diz o relato mesopotâmico. O dilúvio, diz a Bíblia, foi castigo infligido pelo Deus único e verdadeiro, o Deus de Israel, e não pelos deuses. O dilúvio não destruiu toda a humanidade, mas "todos os homens" da região atingida (exceto os que estavam na arca); a humanidade teve novo começo com Noé e seus filhos, isto é, os homens, mesmo diferentes, são descendentes ainda de um só casal.
Por isso podemos considerar a narração bíblica como relato etiológico também, isto é, relato que procura dar o motivo, a causa, o porquê de determinado fato, do qual todas as pessoas tinham lembrança na consciência coletiva. Não foi inundação universal no sentido de mundo inteiro, como sugere a Bíblia, pois isso seria geologicamente impossível, mas universal no sentido de mundo conhecido.
A narração etiológico-teológica da Bíblia sobre o dilúvio sublinha então algumas ideias religiosas centrais e profundamente diferentes das ideias veiculadas pela narração mesopotâmica: o dilúvio foi castigo enviado pelo Deus único e verdadeiro; foi enviado por causa do pecado dos homens; a humanidade descende de um só casal, apesar das diferenças raciais.
Podemos dizer que o núcleo histórico da tradição sobre o dilúvio constitui patrimônio cultural comum dos dois povos: os israelitas e os mesopotâmicos. É uma tradição cultural, semítica. No correr dos séculos a tradição comum foi sendo enxertada com as concepções religiosas de cada povo. Assim a tradição mesopotâmica é marcada pelo politeísmo e a tradição israelita pelo monoteísmo. É a diferença fundamental entre ambas.
A paleontologia e a etnografia provam cientificamente a existência de inundações imensas aconteci das entre os anos 3.700-2.800 a.C. na Mesopotâmia. O dilúvio foi então uma imensa inundação que ocorreu em determinado período imemorial da História e que é lembrada por todos os povos nas suas tradições religiosas. A Bíblia também a lembra, mas purifica teologicamente o relato sobre ela. A narração bíblica não pode, portanto, ser tomada ao pé da letra porque se tornaria inexplicável, incompreensível. Não caberiam, por exemplo, na arca de Noé exemplares de todos os animais; a água que, segundo a Bíblia, caiu sobre a terra ("As águas encobriram as montanhas e se elevaram ainda quinze côvados" = 7 metros acima das mais altas montanhas) teria desviado o eixo da própria terra etc.
Convém lembrar aqui que o dilúvio é visto pelo autor bíblico, dentro de um esquema teológico, como o relato do pecado de TODA a humanidade. Ele já relatara antes o pecado do homem (= Adão e Eva: Gn 3); relatara o pecado do irmão contra o irmão (Caim: Gn 4); relata agora, aqui, o pecado de todos os homens. O pecado, diz ele,pessoal, social ou coletivo, sempre traz sérias consequências para o homem e para a comunidade. É sempre rompimento da aliança com Deus.
Para finalizar podemos dizer que o dilúvio existiu de fato. Foi uma imensa inundação aconteci da na antiguidade. A Bíblia, porém, viu esse fenômeno como castigo de Deus para uma humanidade depravada e viu também nesse fenômeno a ocasião para reafirmar a aliança que o homem deve manter sempre com seu Deus. Segundo a ótica bíblica, a narração do dilúvio pode ser lida também como relato que quer mostrar o poder de Deus na História e sobre a criação. Ele é o Senhor, o Criador; pode até destruir a criação. É ele também aquele que a conserva e a sustenta (Gn 8,22; 9,1s8).