Não. Dizer que o mundo foi feito em sete dias é ler a Bíblia de modo fundamentalista[1]. Isto porque a Bíblia não dá um passo maior do que a perna das pessoas. Em outras palavras, a Bíblia é também fruto de uma cultura e de uma visão de mundo próprias do seu tempo. O povo da Bíblia imaginava a terra de um modo muito diferente do nosso.
Antigamente a narração bíblica sobre a criação do mundo e do homem não oferecia nenhum problema: os antigos consideravam como realmente históricos os acontecimentos narrados em Gn 1-11. Na Idade Média, a narração da criação segundo o livro do Gênesis foi considerada alegórica, de modo geral. Hoje em dia, porém, a ciência levanta dificuldades quanto à historicidade da narração e mostra que muitas afirmações são anticientíficas, como, por exemplo, o aparecimento das plantas antes do sol (Gn 1,11-18). A visão bíblica e a visão científica são até opostas.
Segundo a Bíblia, a criação foi obra perfeita: “Deus viu que a luz era boa... Deus viu que era bom" (Gn 1,4.10.12.18.21). Em Gn 1,31 é dito que "Deus viu tudo o que fizera, e eis que estava muito bom. Para a Bíblia o homem aparece já feito, perfeito e feliz. O que estragou esse estado de perfeição foi o pecado, segundo Gn 3.
Segundo a ciência, porém, a perfeição não é própria das origens; na origem há imperfeição, e a perfeição é alcançada através de uma evolução natural. Daí, a perfeição a que se refere a Bíblia só pode ter sido alcançada mais tarde. (Nesse sentido o pecado, relatado na Bíblia em Gn 3 como queda de um estado de perfeição anterior, é visto por alguns estudiosos não como erro, pecado, mas como passo à frente na busca da perfeição: o homem quis conhecer mais, saber mais, avizinhar-se da total liberdade!).
Hoje o relato bíblico sobre as origens não é mais aceito, incondicionalmente, como documento histórico. A narração bíblica passou pela crítica científica, exegética, histórica e literária; temos hoje bem clara e bem definida a intenção do autor ao escrever isso. Hoje temos a síntese. Antigamente toda a narração era considerada histórica; na Idade Média, alegórica. Hoje sabemos que é narração essencialmente teológica, baseada nas tradições do povo, na cultura do Antigo Oriente e principalmente na fé.
Há, porém, muitos que apressadamente julgam ainda a narração bíblica de ontem com os critérios científicos de hoje. E atribuem à Bíblia erros que ela não comete, pois ela não faz ciência, mas teologia. Desconhecer isso e julgar o autor bíblico como anticientífico, é cometer erro maior do que aquele que se atribui a ele.
A narração da criação do mundo em sete dias que se encontra em Gênesis 1,1-2,4a nasceu no tempo em que o povo de Deus estava exilado na Babilônia (586-538 a.C) e foi escrita por um grupo de sacerdotes com intenções religiosas e litúrgicas. A situação do exílio influenciava muito a vida de todos: estava o povo fora da pátria, sem rei, sem sacerdote, sem templo, diante de muitos ídolos e sofrendo pressão para abandonar a própria fé e aderir ao deus Marduc, que era o deus de Babilônia. Como manter a fé, a vida religiosa, em tal situação? Quem era mais poderoso: Marduc, o deus de Babilônia vencedora, ou Javé, o Deus libertador de povo vencido? Que libertação era essa?
Diante desse estado de ambiguidade e de desânimo é que aparece a narração sacerdotal que temos em Gn 1,1-2,4a. Aparece com a finalidade religiosa específica: sustentar a fé do povo, dar sentido à vida, dar esperanças de retorno.
Os sacerdotes partem de um princípio: Israel recebeu as promessas de Deus em Abraão e com os patriarcas e tem a herança do passado. Se está agora exilado, é porque Sé esqueceu de Deus. Se voltar para Deus e permanecer fiel a ele, tudo será reconstruído: haverá nação, rei, templo e sacerdote, pois o povo é e será sempre a herança do Senhor (SI 16,5; 28,9; 47,4; 78,71; 10,16 etc.).
Em seguida os sacerdotes ensinam que para manter a fidelidade a Deus e continuar sendo sua herança, o povo deve evitar o culto dos ídolos, a religião de Babilônia e manifestar essa fidelidade através do culto verdadeiro. Como celebrar o culto verdadeiro e participar da vida religiosa se não existia o Templo?
Para responder a essa indagação do povo, os sacerdotes montaram o esquema da criação em seis dias com o "descanso" de Deus no sétimo. A intenção deles não foi científica, nem quiseram afirmar que o mundo foi feito em seis dias de 24 horas e nem em seis períodos de tempo. A intenção deles foi religiosa: fundamentar o sétimo dia como dia de descanso e culto. Se Deus "descansara" no sétimo dia, também o povo deveria descansar nesse dia (o sábado); deveria reunir-se em comunidade, ouvir e estudar a Palavra de Deus e cultivar a fé. O relato não é, pois, histórico, mas essencialmente teológico: o Deus todo- poderoso que tudo criou, é o mesmo que criou o povo de Israel. Ele conservará seu povo, até no exílio. O povo de Deus não desaparecerá. Voltará à sua pátria, ao seu Templo. É preciso, porém, desde agora, manter a fé e ser fiel a Javé.
O "descanso" de Deus não é, pois, repouso físico, mas um esquema literário para traduzir uma verdade teológica: a observância integral do sábado como "Dia do Senhor" e como meio de unir o povo e manter a fé.
A criação do mundo em seis dias - vamos repetir - é um esquema literário artificial, feito para desembocar no sábado (= sétimo dia). A ordem da criação é descrita pelo autor experimentalmente, conforme a observação do dia-a-dia. Ele não está interessado em discutir se as plantas devem existir antes ou depois do sol.
Ele fala do que via experimentalmente - assim como também nós dizemos que o sol se levanta e se põe, que ele gira por sobre a terra, quando a ciência diz o contrário: é a terra que gira ao redor do sol. Com seu esquema o autor está apenas afirmando que foi Deus quem fez o sol e as plantas; fala da criação a partir da observação do dia-a-dia: para criar as coisas é preciso ter claridade (luz, Gn 1,3); fala que existem terra e água (1,6-10); que existem árvores, ervas, sementes (1,11-13); sol e lua, dia e noite (1,14-19); animais, aves, peixes (1,20-26); e diz que o homem domina a natureza e os animais; que ele ama e gera filhos; e que o homem é um "carbono" de Deus (1,26-31). São, portanto, seis dias de criação. No sétimo, Deus descansou. O homem, "imagem de Deus", deve descansar também, observar o sábado, celebrar o culto, guardar sua identidade religiosa.
O esquema do autor sacerdotal não é, pois, científico, e sim artificial; sua intenção não é a de fazer história, mas teologia.
[1] Existem muitas maneiras de se ler a Bíblia e, especificamente, o livro do Gênesis. Podemos fazer uma leitura fundamentalista, científica ou simbólica. A leitura fundamentalista é aquela que interpreta o texto ao pé da letra. Por exemplo, ao ler no relato de Gênesis 1 que Deus criou o mundo em seis dias, a pessoa acredita no relato como fato, pois, afinal, está escrito na Bíblia. Quem se fixa nesse tipo de leitura pode se fechar ao diálogo com as ciências e com outras pessoas que pensam de maneira diferente, ou até mesmo abandonar a Bíblia como um livro sem sentido.