O pano de fundo para as respostas sobre os primeiros capítulos do Gênesis é sempre o gênero literário usado pelos autores para relatarem suas reflexões. Gênero literário é o modo de apresentar um pensamento ou mensagem sob determinada forma literária. Por. ex., a poesia é de um gênero literário; um escrito sobre astronomia é de outro. O gênero literário usa também certos recursos, certa técnica (p.ex., comparações, alegorias, imagens etc.) que possam traduzir melhor a ideia que o autor quer transmitir. No gênero literário um autor pode usar ainda o meio que julgar mais conveniente para atingir seus leitores, p. ex., o romance, a novela, o discurso etc.
Cada ciência ou cada disciplina tem seu gênero literário específico. "Conhecer o gênero literário de uma obra - diz o Pe. Benoit- é ter nas mãos a chave que nos possibilita entendê-la"." Assim acontece na Bíblia. Há um gênero literário específico: o religioso; e dentre desse gênero literário específico religioso, cada autor escolheu a forma que no seu tempo melhor lhe servia para transmitir sua ideia.
O Gênesis usa muito a simbologia, o jogo de palavras; emprega imagens conhecidas pelo povo; usa elementos tirados da cultura. religiosa judaica, da mesopotâmica, da cananaica etc. De tudo isso se serviu, p. ex., o autor do relato sobre a queda do homem (Gn 3) para refletir com seu povo sobre existência do mal no mundo.
E os elementos simbólicos presentes no seu relato (Gn 3) são muitos: a serpente, as árvores do jardim, o fruto da árvore, as folhas de figueira, o rumor dos passos de Deus, a hora da brisa, o esconder do homem, os diálogos (Deus/homem, Deus/serpente), as maldições (à serpente, à mulher, ao homem), as vestes para o casal, a expulsão do paraíso e os querubins (anjos) que guardam com espada desembainhada a entrada do paraíso."
O autor não tem a intenção de explicar a origem do mal. Ele não sabe a origem, como nós também não sabemos. Sabe apenas, como nós também o sabemos, que o mal existe porque tanto ele como nós mesmos o praticamos e temos dele experiência.Todo homem pergunta a respeito da origem do mal. Por que existe o mal? Por que não existe só o bem?
As religiões e culturas antigas procuraram dar uma resposta, criando suas lendas religiosas, seus mitos etiológicos (isto é, histórias que explicavam a origem de alguma crença comum). Assim o fizeram, p. ex., os gregos, os romanos, os egípcios, os nossos índios. O homem bíblico também refletiu sobre esse problema existencial e deixou sua reflexão por escrito, através de um gênero literário carregado de imagens e de símbolos. Sua reflexão não parte de cima para baixo, mas de baixo para cima, isto é, ele não explica por que existe o mal hoje, não identifica sua origem; ao contrário: ele diz que se existe o mal hoje é porque ele teve origem, perdida nos tempos; diz que há no homem alguma coisa de radical oposição ao bem, que exige uma causa primeira, uma origem. Ele simplesmente constata com seu texto que há um mal de origem, ou como dizemos, um "pecado original".
Diante desta constatação, o autor se dispõe a atacar pela raiz o mal capital que existia no seu tempo, que seduzia e comprometia o seu povo: a tentação pelos ídolos. Essa tentação e esse pecado constituíam a causa de tantos outros males. Depois de constatar isso, o autor aponta uma saída: é preciso lutar contra essa sedução do mal que está dentro de cada um, para se conseguir retomar ao paraíso (= uma terra sem males, uma sociedade justa e fraterna).
Para transmitir essa reflexão, o autor usa uma história; a história é verdadeira: o mal existe e entrou no mundo através do próprio homem. Os elementos que usa para ilustrar essa história, porém, são simbólicos, isto é, são indicadores da verdade que ele quer transmitir; são eles a exteriorização, a expressão dessa verdade. Vamos então ver alguns.
a) A árvore. São citados dois tipos de árvore em Gn 3: a árvore do conhecimento do bem e do mal (v. 5) e a árvore da vida (vv. 3 e 22). Em Gn 2,16-17 são lembradas todas as árvores do paraíso e a árvore do conhecimento do bem e do mal.
Conforme o texto, o homem podia comer de todas as árvores, exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Nesse dia morreria (Gên 2,16-17). O que significa isso? "Comer de todas as árvores" é símbolo denso de significado. Na Bíblia, a Sabedoria e a Lei de Deus são comparadas a uma árvore. Diz o livro dos Provérbios: "É árvore da vida quem escolheu a sabedoria" (Pr 3,18).
Ter a sabedoria é ter a vida; ela ensina os caminhos para a vida. Por outro lado, a Lei de Deus é chamada na Bíblia "lei da vida"; observar a Lei de Deus é então viver. Assim diz, p. ex., o salmo 118,93: "Jamais hei de esquecer os teus preceitos, pois é por eles que tu me enches de vida".
E diz ainda a Bíblia que o homem que cumpre a lei de Deus é semelhante a uma árvore viçosa plantada à beira das águas (Sl 1,1-3). Daqui podemos concluir que o homem conhecerá o que é o bem e o que é o mal por meio da Lei de Deus: se ele observar a Lei de Deus (= praticar o bem) será feliz, viverá; se não observar (= praticar o mal), será infeliz, morrerá.
Essa experiência ele a tem no dia-a-dia. O livro do Deuteronômio lembra-o quando propõe a Aliança de Deus para o homem: "Vê, eu te proponho, hoje, a vida e a felicidade, ou a morte e a desgraça" (Dt 30,15). Ainda diz o mesmo livro: "Tomo, hoje, como testemunhas contra vós, o céu e a terra: eu vos propus a vida e a morte, a bênção e a maldição, escolhe a vida, para que vivas, tu e a tua posteridade, amando a Javé, teu Deus, escutando a sua voz e apegando-te a ele. Porque essa é a tua vida, com os longos dias que terás; morando na terra que Javé jurou a teus pais, Abraão, Isaac e Jacó, que lhes haveria de dar" (Dt 30,19-20).
Se a sabedoria e a Lei de Deus são comparadas na Bíblia a árvores, "comer destas árvores" significa ter sabedoria, observar a Lei de Deus, ser sábio, viver. O homem deve crer nisso, aceitar isso, pois é o próprio Deus quem lhe garante. Esse é, pois, o sentido da ordem de Deus de o homem poder comer de todas as árvores, inclusive da árvore da vida (Gn 2,16).
Mas o homem não aceita facilmente o que Deus lhe ordena; não crê na sua Palavra. Quer ter a sua certeza, alcançar por si mesmo o conhecimento do bem e do mal seguindo seus próprios critérios, 'deixando de lado a Sabedoria e a Lei de Deus.
Essa experiência, sempre amarga, a Bíblia a chama "comer da árvore do bem e do mal". Deus o proibira, exatamente porque já dera ao homem a possibilidade de ser feliz observando sua Lei, sendo fiel e sábio. Deus não quis e não quer o mal. Mas o homem o quis e quer. Esse é o sentido de "não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal". Não é preciso fazer experiência por si. Basta confiar e crer em Deus.
A expressão bíblica "comer das árvores do jardim, exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal", é, de fato, expressão, modo de falar que o autor usa para dizer que o homem tem na vida duas opções: ser sábio e ter a vida (= "comer das árvores do paraíso" = obedecer à Lei de Deus) ou ser ignorante e encontrar a morte (= "comer da árvore do bem e do mal" = seguir suas próprias ideias).
b) A maçã. A maçã não é mencionada nesse texto bíblico. O texto fala de "fruto" (Gn 3,3.6). O costume de se designar a maçã como o fruto proibido do paraíso, vem das pinturas bíblicas clássicas, que por sua vez traduzem a ideia da mitologia antiga" na qual a maçã era o símbolo da tentação. Na Bíblia, essa tradição da mitologia antiga é também usada para designar a tentação do homem para o mal. No Gênesis, o fruto ou a "maçã" simbolizam a "eterna tentação do homem em não querer conhecer-se como criatura diante de Deus, mas querer comportar-se por si mesmo, não submeter-se, escolher o próprio caminho, julgar-se norma única e exclusiva para conhecer o bem e o mal". 7 Comer desse fruto, ou comer a "maçã", é deixar Deus e seguir a si próprio; é seguir imprudentemente o próprio caminho.
c) As folhas da figueira e a nudez; o rumor dos passos de Deus e o esconder-se de Adão e Eva (Gn 3,78). Todos esses elementos pertencem ao mesmo quadro: o da tomada de consciência, pelo homem, de uma burrada feita! Deus mostrara ao homem o caminho do bem e da vida (= árvores do paraíso e árvore da vida); o homem não aceitou a proposta de Deus e quis fazer a sua experiência, decidir por si mesmo (= conhecer a árvore do bem e do mal).
Uma vez feita a experiência contra Deus, o homem percebeu imediatamente o mal que acabara de praticar; sentiu toda a frustração que essa experiência amarga lhe trouxera e a desilusão; sentiu- se sem argumentos diante de Deus-que já o prevenira anteriormente; tomou consciência da situação e com medo não quis olhar para Deus, não quis enfrentá-lo! Era preciso fugir dele!
Esse drama do homem é descrito com imagens, com símbolos em Gn 3,7-8. A nudez é a tomada de consciência do homem diante de Deus: ele está desarmado, envergonhado, desprevenido; errou, tem que calar a boca. As folhas de figueira designam o medo do homem depois de uma trágica experiência feita: é preciso cobrir-se, ou seja: o erro foi descoberto, percebido; era preciso, pois, tentar ocultá-lo. A reação é a mesma de pessoa que é surpreendida nua!
O rumor dos passos de Deus,designa o temor profundo do homem que errou voluntariamente: ele deve agora encontrar-se com Deus, dar-lhe satisfação por ter abandonado a Lei divina. Designa a ânsia do homem que espera um Deus que lhe pedirá contas dentro em breve! Enquanto ele, o homem, seguia a Lei de Deus (= comer das árvores do paraíso e da árvore da vida), os passos de Deus eram aguardados por ele como sinais da agradável visita de amigo (= "Javé Deus que passeava no jardim à hora da brisa do dia", diz Gn 3,8). Tão logo deixou de seguir a Lei de Deus e seguiu a sua própria lei (= comer da árvore do conhecimento do bem e do mal), os mesmos passos de Deus são aguardados com temor e angústia (Gn 3,8b). O "esconder-se" de Deus (Gn 3,8b.10) é o símbolo do homem que se reconhece pecador, culpado e consciente; ainda não aberto à conversão; orgulhoso. Prefere a fuga ao diálogo; prefere a angústia do culpado à misericórdia e à paz que vêm de Deus. O homem estava nu (= consciente de sua culpa), mas não tinha a humildade de reconhecer-se culpado diante de Deus (= esconder-se).
d) A serpente. O autor bíblico faz nesse relato uma pergunta: por que o homem não quer ser sábio, seguir a lei de Deus e ser feliz, mas prefere percorrer seu próprio caminho, esconder-se de Deus e ser infeliz? Ou por outras palavras: por que o homem sente mais atração para o mal do que para o bem?
E ele responde: a causadora de todo esse transtorno foi a serpente. Foi ela que levou o homem a comer o fruto proibido! A serpente personifica aqui a tentação; personifica aquela inclinação quase indomável que todos nós temos para o mal. Para o autor a causa de todo o mal é o próprio homem que se deixa levar por essa tentação, por essa má inclinação.
Ele usa um símbolo para dizê-lo: o símbolo é a serpente. E por que a serpente? Porque no seu tempo a serpente era o símbolo da religião de Canaã, país em que vivia também o povo de Deus. Essa religião não tinha muitos compromissos éticos; era religião mágica, idolátrica e praticava a prostituição "sagrada" como sinal da perenidade da vida (lRs 14,24; 15,12; 22,47; 2Rs 23,7). E a serpente era o símbolo dessa religião; era símbolo porque representava, primeiramente, o órgão sexual masculino, reprodutor da vida (emblema fálico), e depois porque soltando periodicamente sua pele e renovando-se sempre, a serpente tornava-se símbolo de vida eterna! Esses elementos entraram na mitologia e no folclore orientais.
Outro elemento a ser considerado na explicação do texto: a serpente é, para todos os povos, símbolo do mal; é traiçoeira, venenosa, mata. O povo de Deus sempre sentiu a tentação de deixar a sua religião de aliança comprometida com Deus para seguir a religião de Canaã, mais sedutora, sem muitos compromissos, além de favorecer a prostituição - embora sob aparência de culto.
Esse tipo de religião exerceu grande fascínio sobre o povo. Atraía. E tantas vezes o povo de Deus se deixou seduzir! Esse tipo de apostasia religiosa trazia sérias consequências para a vida do povo. Descompromissando-se com Deus, o homem descompromissava-se também com seu próximo. O resultado disso era a falsidade cultual, a exploração dos mais fracos, o sincretismo religioso; e tudo isso feito com a consciência tranquila! Por isso os profetas e os reis justos atacavam violentamente esse tipo de "religião" (veja as citações feitas acima e mais as seguintes: Os 4,12.18; 6,10; Ez 16,24.31.39; Is 1,21- 23; Am 4,1-3).
A serpente tornou-se símbolo da traição a Deus e à fé; símbolo de todo mal.
O autor bíblico usa todo esse contexto cultural, mítico e religioso que envolvia a figura da serpente, como também o próprio símbolo, para explicar a causa do pecado do homem, que não quis ser sábio e seguir a lei de Deus. Ele prevaricou porque a serpente o seduzira; isto é, foi tentado, cedeu.
A origem do mal está, pois, nessa escolha errada do homem; preferiu "ouvir" a serpente a ouvir a Deus. Desse modo parece claro que a presença da serpente no relato é presença etiológica, ou seja, é usada 'como figura, símbolo para dar explicação sobre a origem do mal. Evidentemente não foi a serpente que tentou o homem. O homem sentiu dentro de si o fascínio do mal, foi atraído, cedeu e percebeu depois que isso lhe foi nocivo, venenoso, trouxe a morte!
Essa mesma tentação está dentro de cada um de nós; ainda hoje o homem protesta contra Deus, não quer ouvir a sua voz, preferindo "ouvir a serpente". A tentação (= serpente) está sempre espreitando o homem. Assim é hoje e assim foi também no começo da humanidade."
1. Mitologia é a história fabulosa dos deuses, dos heróis da antiguidade. Vem da palavra mito, que é uma pequena história feita para explicar certas tradições ou crenças populares. A palavra mito, literalmente, quer dizer narração.
2. C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança? (Vozes, 1971), p. 56-57.