O beato Antônio Conselheiro, há mais de cem anos, profetizou: "Dias virão em que os rios secarão e a água se tornará rara. O pecado do povo fará tudo ficar de cabeça para baixo. Tudo será transformado. O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão". Esta profecia foi retomada por Padre Cícero Romão e continua sendo um alerta para os nossos dias.
-No dia 26 de dezembro de 2004, o mundo todo acompanhou o tsunami que aconteceu na Ásia, inundando o sul e o sudeste da Ásia, atingindo algumas regiões da Indonésia, Sri Lanka, Índia e Tailândia. Esta tragédia ceifou a vida de mais de 280 mil pessoas e deixou várias cidades destruídas. Um verdadeiro dilúvio.
-Nos últimos anos, constantemente ouvimos falar do aquecimento global e de suas conseqüências, entre elas as secas, as inundações, os furacões, a fome, o calor excessivo. Segundo as previsões dos cientistas, entre 200 e 600 milhões de pessoas enfrentarão falta de alimentos nos 70 anos seguintes, enquanto inundações litorâneas podem destruir 7 milhões de casas.
Diante da realidade de fome, seca e inundações que afetam a vida de milhões de pessoas, sempre nos perguntamos: Por que? Quando aconteceu o Tsunami, algumas interpretações de cunho religioso afirmaram: "Deus permitiu a morte dessas pessoas para que a humanidade se desse conta de que precisa melhorar, ser mais sensível à realidade do outro!" Será?
Ontem como hoje, cada povo, a partir de sua cultura e de sua realidade, reflete sobre a causa dos desastres nacionais: inundações, terremotos, guerras, etc. A Bíblia também registra uma história de dilúvio. Os capítulos 6 a 9 do livro do Gênesis apresentam uma história completa de dilúvio: causas, destruições e recriação. Nela, o povo de Israel afirma que Deus não castiga o ser humano por sua maldade; é a sua própria ação que continua destruindo a si mesmo e a natureza.
A base de sua reflexão é a experiência e a observação da vida cotidiana, especialmente do exílio na Babilônia, da vida sofrida dos deportados de Israel no império tirano. A história do dilúvio, sua linguagem e simbolismo, é semelhante aos mitos da Mesopotâmia, onde se situa a Babilônia, mas foi adaptada conforme os interesses e a crença religiosa de seus escritores. A história do dilúvio, tecida de experiências vividas pelo povo de Israel, é um alerta e, ao mesmo tempo, uma lição da vida. Uma história de sabedoria.
1- Mitos de dilúvio
Ásia, Europa, África, Oceania e as Américas produziram vários relatos sobre o dilúvio, dos quais cerca de 70 são conhecidos! São relatos que nasceram das experiências concretas de vários povos com as inundações. A região da Mesopotâmia, hoje conhecida como Iraque e Síria, não foge à regra. As descobertas arqueológicas comprovam que as narrações mesopotâmicas têm como base inundações nas regiões baixas do Tigre e do Eufrates, uma área de aproximadamente 600 Km, mas que, para os habitantes da região, significava o mundo inteiro. A partir dessa vivência, o povo elabora suas histórias de dilúvio, respondendo à seguinte pergunta: Por que as divindades nos castigam? De quem é a culpa?
Um dos mitos do dilúvio mais conhecidos se encontra na Epopéia de Gilgamesh, que apresenta algumas semelhanças com o relato bíblico. É um poema babilônico, descoberto nas ruínas da antiga cidade de Nínive, entre 1849 e 1854, em tabuinhas de terracota. Foram encontrados fragmentos dessa história na Palestina e na Anatólia. Uma história muito popular.
A Epopéia de Gilgamesh, conservada na biblioteca do rei da Assíria, Assurbanipal, pode ser datada do século VII a.C. De acordo com a história, a morte de Enkidu trouxe grande tormento para o seu amigo Gilgamesh. Por isso, ele parte em busca do segredo da imortalidade, mas chega a um lugar situado além das águas da morte. Nesse local, Utnapishtim desfruta da imortalidade. Gilgamesh quer saber como ele conseguiu a imortalidade e um lugar entre as divindades.
Eis a resposta de Utnapishtim, o amigo de Gilgamesh: "Vou revelar-te, Gilgamesh, algo oculto, e o segredo dos deuses, a ti quero contar. Shuruppak, a cidade que conheces, [e] que está situada [à margem] do Eufrates, esta cidade é antiga, é lá que estavam o deuses. Suas más disposições levaram os grandes deuses a desencadear um dilúvio; Homem de Shuruppak, filho de Ubar-Tutu, passa a demolir tua casa, constrói um barco; renuncia a riqueza e busca a vida; despreza os bens e conserva a vida; Faze subir à barca viventes de todas as espécies. Que da barca que construirás, as dimensões se correspondam: que sua largura e comprimento sejam iguais; cobre-a como é coberto o Apsu. Eu compreendi e disse a Ea, meu Senhor: "[...] meu Senhor, assim será como tu me disseste; [fiquei] atento e, assim, o farei!"
De acordo com esse relato da tradição mesopotâmica, o dilúvio foi um acontecimento que atingiu o mundo todo, salvando-se apenas os homens e os animais que estavam na barca; depois de sete dias, a chuva parou e a barca ancorou no monte Nicir. Num primeiro momento, Utnapishtim soltou uma pomba que logo voltou; depois soltou uma andorinha e esta também voltou; por fim, soltou o corvo, que não voltou. Em seguida, soltou todos os animais e ofereceu um sacrifício de ação de graças às divindades.
Quem copiou de quem? Na epopéia de Gilgamesh há muitos elementos que são semelhantes ao texto bíblico (Gn 6,1-9,17). Vejamos bem: acontece o dilúvio, apenas um homem e um casal de cada espécie de animais se salvam: há um deus que avisa uma pessoa sobre a proximidade da inundação; a construção de um barco que ancora no mar; o período do dilúvio, de acordo com Gênesis 7,4, é de sete dias; o sacrifício e a bênção das divindades. Coincidências demais, não!?
Entre a tradição mesopotâmica sobre o dilúvio e a tradição bíblica há muitos pontos em comum, mas também há muitas diferenças. De acordo com a Epopéia de Gilgamesh, o dilúvio é por causa das más disposições dos deuses. Os seres humanos oferecem sacrifícios para aplacar a ira das divindades, justificando-se assim os ritos de sacrifícios que correspondiam aos interesses do império. A narrativa bíblica apresenta outro motivo. Vamos retomar o relato de Gênesis
Gilgamesh, o dilúvio é por causa das más disposições dos deuses. Os seres humanos oferecem sacrifícios para aplacar a ira das divindades, justificando-se assim os ritos de sacrifícios que correspondiam aos interesses do império. A narrativa bíblica apresenta outro motivo. Vamos retomar o relato de Gênesis
Leitura do Livro do Genesis Gn 9,8-15
AMBIENTE. Os primeiros onze capítulos do Livro do Genesis apresentam um conjunto de tradições sobre as origens do mundo e dos homens. Construídos com dados heterogéneos, estes capítulos descrevem uma “pré-história” que decorre num mundo ideal antes que as etnias, as nações, a política ou as classes sociais separassem os homens. Os episódios que compõem este bloco não são informações de factos históricos concretos, acontecidos na aurora da humanidade. São lendas e mitos, muitas vezes com extraordinárias semelhanças literárias com as lendas e mitos de outros povos do Crescente Fértil (nomeadamente da Mesopotâmia). Naturalmente, os catequistas de Israel tomaram esses mitos, adaptaram-nos, modificaram-nos e puseram-nos ao serviço da transmissão da sua própria fé. Através desses mitos e lendas, os teólogos de Israel expuseram as suas convicções e as suas descobertas sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo.
O texto que hoje nos é proposto faz parte de uma secção que abrange Gn 6,1-9,17. É a história de um cataclismo de águas, que teria eliminado toda a humanidade, exceto Noé e a sua família. A história do dilúvio, apresentada nesta secção, deverá ser considerada uma reportagem de acontecimentos concretos?
Para alguns, o dilúvio bíblico poderia estar relacionado com o fim da era glaciar, quando a fusão dos gelos provocou notáveis avalanches de água que invadiram as terras habitadas e deixaram profundos sinais na memória coletiva dos povos. Mas o mais provável é que o dilúvio descrito nos textos do Génesis (e que é quase copiado de certos textos mesopotâmicos que apresentam o mesmo tema) se refira a uma das inúmeras inundações dos Rios Tigre e do Eufrates… A arqueologia dá, aliás, conta de várias inundações especialmente catastróficas nessa parte do mundo entre 4000 e 2800 a.C. É provável que o texto bíblico evoque essa realidade. Não se tratou, em qualquer caso, de um dilúvio universal; mas, com o tempo, a fantasia popular teria feito dessas inundações um “castigo universal” que atingiu o conjunto da humanidade. O autor bíblico, conhecedor dessas lendas antigas, vai usá-las como pano de fundo para fazer catequese e transmitir uma mensagem religiosa.
Os catequistas jahwistas e sacerdotais quiseram dizer ao seu Povo que Jahwéh não fica de braços cruzados quando os homens se lançam por caminhos de corrupção e de pecado… Com esse propósito, lançaram mão da velha lenda mesopotâmica do dilúvio, que falava de uma catástrofe universal enviada pelos deuses para punir os pecados dos homens… Mas, porque Deus não castiga às cegas bons e maus, justos e injustos, os autores vão propor a história do justo Noé e da sua família, salvos por Deus da catástrofe.
O nosso texto situa-nos na fase imediatamente posterior ao dilúvio, quando já tinha deixado de chover e quando Noé e a sua família já tinham desembarcado em terra seca. Os sobreviventes construíram um altar e ofereceram holocaustos sobre o altar; por sua vez, o Senhor Deus comprometeu-Se a não mais “castigar os seres vivos” de forma tão radical (cf. Gn 8,13-22), abençoou Noé e a sua família (cf. Gn 9,1-7) e fez uma Aliança com eles.
MENSAGEM.
Leitura do Livro do Genesis Gn 9,8-15
AMBIENTE. Os primeiros onze capítulos do Livro do Genesis apresentam um conjunto de tradições sobre as origens do mundo e dos homens. Construídos com dados heterogéneos, estes capítulos descrevem uma “pré-história” que decorre num mundo ideal antes que as etnias, as nações, a política ou as classes sociais separassem os homens. Os episódios que compõem este bloco não são informações de factos históricos concretos, acontecidos na aurora da humanidade. São lendas e mitos, muitas vezes com extraordinárias semelhanças literárias com as lendas e mitos de outros povos do Crescente Fértil (nomeadamente da Mesopotâmia). Naturalmente, os catequistas de Israel tomaram esses mitos, adaptaram-nos, modificaram-nos e puseram-nos ao serviço da transmissão da sua própria fé. Através desses mitos e lendas, os teólogos de Israel expuseram as suas convicções e as suas descobertas sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo.
O texto que hoje nos é proposto faz parte de uma secção que abrange Gn 6,1-9,17. É a história de um cataclismo de águas, que teria eliminado toda a humanidade, exceto Noé e a sua família. A história do dilúvio, apresentada nesta secção, deverá ser considerada uma reportagem de acontecimentos concretos?
Para alguns, o dilúvio bíblico poderia estar relacionado com o fim da era glaciar, quando a fusão dos gelos provocou notáveis avalanches de água que invadiram as terras habitadas e deixaram profundos sinais na memória coletiva dos povos. Mas o mais provável é que o dilúvio descrito nos textos do Génesis (e que é quase copiado de certos textos mesopotâmicos que apresentam o mesmo tema) se refira a uma das inúmeras inundações dos Rios Tigre e do Eufrates… A arqueologia dá, aliás, conta de várias inundações especialmente catastróficas nessa parte do mundo entre 4000 e 2800 a.C. É provável que o texto bíblico evoque essa realidade. Não se tratou, em qualquer caso, de um dilúvio universal; mas, com o tempo, a fantasia popular teria feito dessas inundações um “castigo universal” que atingiu o conjunto da humanidade. O autor bíblico, conhecedor dessas lendas antigas, vai usá-las como pano de fundo para fazer catequese e transmitir uma mensagem religiosa.
Os catequistas jahwistas e sacerdotais quiseram dizer ao seu Povo que Jahwéh não fica de braços cruzados quando os homens se lançam por caminhos de corrupção e de pecado… Com esse propósito, lançaram mão da velha lenda mesopotâmica do dilúvio, que falava de uma catástrofe universal enviada pelos deuses para punir os pecados dos homens… Mas, porque Deus não castiga às cegas bons e maus, justos e injustos, os autores vão propor a história do justo Noé e da sua família, salvos por Deus da catástrofe.
O nosso texto situa-nos na fase imediatamente posterior ao dilúvio, quando já tinha deixado de chover e quando Noé e a sua família já tinham desembarcado em terra seca. Os sobreviventes construíram um altar e ofereceram holocaustos sobre o altar; por sua vez, o Senhor Deus comprometeu-Se a não mais “castigar os seres vivos” de forma tão radical (cf. Gn 8,13-22), abençoou Noé e a sua família (cf. Gn 9,1-7) e fez uma Aliança com eles.
MENSAGEM. O nosso texto propõe-nos os termos de uma Aliança, oferecida por Jahwéh à nova humanidade (representada por Noé e sua família, presente e futura) e a todos os seres criados (representados pelos animais que saíram da Arca). Nela, Deus compromete-se a depor o seu “arco de guerra” e a garantir a perenidade da ordem cósmica.
A Aliança com Noé apresenta-se, no entanto, como uma Aliança completamente diferente da Aliança feita com Abraão, ou da Aliança feita com Israel no Sinai, ou de qualquer outra Aliança que Jahwéh fez com os homens. Nas outras Alianças, um indivíduo ou um Povo eram chamados a uma relação de comunhão com Deus e aceitavam ou não esse desafio; se o indivíduo ou o Povo em causa não aceitassem, não haveria relação e, portanto, não haveria Aliança… Ao contrário, a Aliança de Jahwéh com Noé não implica nenhuma adesão ou reconhecimento da parte do homem, nem implica qualquer promessa, por parte do homem, no sentido de não voltar a percorrer caminhos de corrupção e de pecado. A Aliança que Jahwéh faz com Noé aparece, assim, como um puro dom de Deus, um fruto do seu amor e da sua misericórdia. É uma Aliança incondicional e sem contrapartidas, que resulta exclusivamente da bondade e da generosidade de Deus.
O sinal desta Aliança será o arco-íris. Em hebraico, a mesma palavra (“qeshet”) designa o “arco-íris” e o “arco de guerra” … Jogando com esta duplicidade, o teólogo sacerdotal, autor deste texto, sugere que Jahwéh pendurou na parede do horizonte o seu “arco de guerra”, a fim de demonstrar ao homem as suas intenções pacíficas. O “arco-íris”, sinal belo e misterioso que toca o céu e a terra, é o “arco” de Jahwéh, através do qual a bondade de Deus abraça o mundo e os homens. O “arco-íris é assim, para o teólogo sacerdotal, um sinal que sugere a vontade que Deus tem de oferecer a paz a toda a criação.
ATUALIZAÇÃO
• Evidentemente, não foi Deus que enviou o dilúvio para castigar os homens. Os catequistas de Israel apenas pegaram na velha lenda mesopotâmica para ensinar que o pecado é algo incompatível com Deus e com os projetos de Deus para o homem e para o mundo; por isso, quando o ódio, a violência, o egoísmo, o orgulho, a prepotência enchem o mundo e trazem infelicidade aos homens, Deus tem de intervir para corrigir o rumo da humanidade. Esta catequese recorda-nos, no início da nossa caminhada quaresmal, que o pecado não é uma realidade que possa coexistir com essa vida nova que Deus nos quer oferecer e que é a nossa vocação fundamental. O pecado destrói a vida e assassina a felicidade do homem; por isso, tem de ser eliminado da nossa existência.
• O sentido geral do texto que nos é proposto aponta, contudo, no sentido da esperança. A Aliança que Deus faz com Noé e com toda a humanidade é uma Aliança totalmente gratuita e incondicional, que não depende do arrependimento do homem ou das contrapartidas que o homem possa oferecer a Deus… Nos termos desta Aliança revela-se um Deus que Se recusa a fazer guerra ao homem, que abençoa e abraça o homem, que ama o homem mesmo quando ele continua a trilhar caminhos de pecado e de infidelidade. Nesta Quaresma, somos convidados a fazer esta experiência de um Deus que nos ama apesar das nossas infidelidades; e somos convidados, também, a deixar que o amor de Deus nos transforme e nos faça renascer para a vida nova.
• A lógica do amor de Deus – amor incondicional, total, universal, que se derrama até sobre os que o não merecem – convida-nos a repensar a nossa forma de abordar a vida e de tratar os nossos irmãos. Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando utilizamos uma lógica de vingança, de intolerância, de incompreensão perante as fragilidades e limitações dos irmãos? Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando respondemos com uma violência maior àqueles que consideramos maus e violentos? Talvez este tempo de Quaresma que nestes dias iniciamos seja um tempo propício para repensarmos as nossas atitudes e para nos convertermos à lógica do amor incondicional, à lógica de Deus.