No princípio, um problema: Quem lê a Bíblia sem estar prevenido se vê diante de um grande problema, já na primeira página: no início do Gênesis não só encontramos duas vezes o relato da criação do mundo, mas, além disso, de maneira tão contraditória que nos deixa perplexos. De fato, Gn 1 conta o relato, tantas vezes ouvido quando éramos crianças, na catequese, segundo o qual no começo dos tempos tudo era caos e vazio, até que Deus resolveu pôr ordem nessa confusão. Antes de se pôr a trabalhar, semelhante a qualquer operário, a primeira coisa que fez foi acender a luz (cf. 1,3). Por isso no primeiro dia da criação surgiram as manhãs e as noites.
Depois decidiu colocar um teto na parte superior da terra para que as águas do céu não a inundassem. E criou o firmamento. Quando viu que o solo era só uma mistura lamacenta, secou uma parte e deixou a outra molhada, e com isso apareceram os mares e a terra firme.E assim, com sua Palavra poderosa, foi enfeitando os diferentes estratos dessa obra arquitetônica com estrelas, sol, lua, plantas, aves, peixes e répteis. E, por último, como coroação de tudo, formou o homem, o melhor de sua criação, a quem modelou conforme sua imagem e semelhança. Decidiu, então, descansar. Havia criado alguém que podia continuar sua tarefa. Esta lhe custara seis dias. E fez tudo bem feito.
Outra vez a mesma coisa: Quando, porém, vamos ao capítulo 2, vem o espanto. Parece que não aconteceu nada antes. Estamos outra vez diante do vazio total, onde não há plantas, nem água, nem homens (cf. Gn 2,5). Deus, novamente em cena, põe-se a trabalhar. Mas é um Deus muito diferente do relato anterior. Em vez de ser solene e majestoso, adquire agora traços muito mais humanos. Torna a criar o homem, mas desta vez não a distância e com o simples mandato de sua Palavra, quase sem se contaminar, mas o modela com o pó da terra, sopra em suas narinas e assim lhe dá a vida (cf. Gn 2,7).
Detalha-se logo, pela segunda vez, a formação de plantas, árvores e animais. E para criar a mulher emprega agora um método diferente. Faz o homem dormir, extrai-lhe uma costela, preenche com carne o vazio que ficou e modela Eva. Depois a apresenta ao homem e a dá como sua companheira ideal para sempre.
A esta altura alguém se pergunta: por que, se já temos em Gn 1 o mundo concluído, Gn 2 o cria de novo? Por acaso no início dos tempos houve duas criações?
E se contradizem: Mas o problema não pára aí. Se começarmos a fazer uma minuciosa comparação entre os dois capítulos, vamos encontrar uma longa lista de contradições que deixam o leitor pasmado.
Desde o começo chama a atenção a forma diferente de referir-se a Deus. Enquanto Gn 1 o designa com o nome hebraico de ELohim (Deus), Gn 2 o chama de Javé Deus.
O Deus de Gn 2 é descrito com aparências mais humanas, de um modo mais primitivo. Ele não cria, mas "faz" as coisas, Suas obras não vêm do nada, mas as fabrica sobre uma terra oca e árida. O Deus de Gn 1, ao contrário, é transcendente e distante. Não entra em contato com a criação, mas a faz surgir 'à distância, como se criasse tudo do nada.
Assim, enquanto Deus em Gn 1 aparece em toda a sua grandiosidade, majestoso, da qual ao som de sua voz vão brotando, uma a uma, as criaturas do Universo, em Gn 2, Deus é muito mais simples. Como se fosse um oleiro, modela e forma o homem (v. 7). Como um agricultor, semeia e planta as árvores do paraíso (v. 8). Como um cirurgião, opera o homem, extraindo-lhe a mulher (v. 21). Como um alfaiate, confecciona os primeiros vestidos para o casal, porque estavam nus (cf. 3,21).
Mais divergências: Enquanto em Gn 1 Deus leva seis dias para criar o mundo e no sétimo descansa, em Gn 2 todo o trabalho da criação leva apenas um dia.
Em Gn 2 Javé cria somente o homem e, dando-se conta de que está só e de que precisa de uma companheira adequada, depois de tentar dar-lhe como companheiros os animais, oferece-lhe a mulher. Em Gn 1, pelo contrário, Deus faz existir desde o princípio, simultaneamente, o homem e a mulher, como casal.
Enquanto em Gn 1 os seres vão surgindo em ordem progressiva, do menor ao maior, ou seja, primeiro as plantas, depois os animais e enfim os seres humanos, em Gn 2 cria-se primeiro o homem (v. 7), mais tarde as plantas (v. 9), os animais (v. 19), e finalmente a mulher (v. 22).
A visão que Gn 1 tem do cosmos é "aquática". Sustenta que no princípio não existia senão uma massa informe de águas primordiais e a terra a ser criada não passará de uma ilhota em meio às águas. A cosmologia de Gn 2, porém, é "terrestre". Antes que o mundo fosse criado, tudo era um imenso deserto de terra seca e estéril (v. 5), pois não havia chuva alguma. Ao ser criada, a terra será um oásis em meio ao deserto.
O segundo é primeiro: Fazendo esta leitura comparativa, ficamos surpresos, pois a Bíblia inclui uma dupla e às vezes contraditória descrição da criação.
Os estudiosos chegaram à conclusão que não poderiam ter sido escritas pela mesma pessoa e pensam antes que pertencem a diferentes autores e a épocas distintas. Como seus nomes não chegaram até nós e nunca poderemos conhecê-los, denominaram o primeiro como "sacerdotal", porque atribuíram a um grupo de sacerdotes do século VI a.c. o segundo, situado no século X a.c., recebeu o nome de "javista", porque prefere chamar a Deus com o nome de Javé.
Como se escreveram dois relatos opostos? Por que acabaram sendo ambos incluídos na Bíblia?
O primeiro a ser composto foi Gn 2, embora na Bíblia apareça em segundo lugar. Por isso tem um sabor tão primitivo, espontâneo, vivido. Durante muitos séculos foi o único relato sobre a origem do mundo que o povo de Israel tinha.
Foi escrito no século X a.C., durante a época do rei Salomão, e seu autor era um excelente catequista que sabia pôr ao alcance do povo, em forma gráfica, as mais altas idéias religiosas. Com um estilo pitoresco e infantil, mas de uma profunda observação da psicologia humana, narra a formação do mundo, do homem e da mulher como uma parábola oriental, cheia de ingenuidade e frescor.
As contribuições vizinhas: Para isso valeu-se de antigos relatos tirados dos povos vizinhos. De fato, as antigas civilizações assíria, babilônica e egípcia tinham composto suas próprias narrativas sobre a origem do cosmos, que hoje podemos conhecer graças às escavações arqueológicas realizadas no Oriente Médio. E torna-se surpreendente a semelhança entre estes relatos e o da Bíblia.
Todos dependem de uma concepção cosmológica de um universo formado por três planos superpostos: os céus, com as águas superiores; a terra, com o homem e os animais; e o mar, com os peixes e as profundezas da terra.O javista recolheu essas tradições populares e concepções científicas de seu tempo e as utilizou para inserir-lhe uma mensagem religiosa, que era a única coisa que lhe interessava.
A grande decepção: Quatro séculos depois de ter sido composto, uma catástrofe veio alterar a vida e a fé do povo judaico. Corria o ano de 587 a C. e o exército babilônico, a mando de Nabucodonosor, que estava em guerra com Israel, tomou Jerusalém e levou cativo o povo.
E lá, na Babilônia, veio a grande surpresa. Os primeiros cativos começaram a chegar àquela capital e se depararam com uma cidade esplêndida, com enormes edifícios, magníficos palácios, torres com vários andares, aquedutos grandiosos, jardins suspensos, fortificações e templos luxuosos.
Eles, que se sentiam orgulhosos de serem uma nação bendita e engrandeci da por Javé na Judéia, não eram senão um povo modesto com escassos recursos diante da Babilônia. O templo de Jerusalém, construído com todo o luxo pelo grande rei Salomão e glória de Javé que o escolhera para sua morada, não era senão um pálido reflexo do impressionante complexo cultural do deus Marduk, da deusa Sin e de seu esposo Ningal.
Jerusalém, orgulho nacional, por quem todo israelita suspirava, era uma cidade apenas considerável em comparação com Babilônia e suas muralhas, enquanto seu rei, ungido de Javé, nada podia fazer diante do poderoso monarca Nabucodonosor, braço direito do deus Marduk.
Para salvar a fé: A situação não podia ser mais decepcionante. Os babilônios haviam conseguido um desenvolvimento muito maior que os israelitas. Para que haviam rezado tanto a Javé, durante séculos, e nele confiado, se o deus da Babilônia era capaz de dar mais poder, esplendor e riqueza a seus devotos?
Aquela catástrofe representou, pois, para os hebreus uma grande desilusão. Pareceu o fim de toda a esperança num Messias, e o vazio das promessas de Deus em sustentar Israel e transformá-lo no povo mais poderoso da terra .
A fé estava em perigo O Deus dos hebreus seria mais fraco que o dos babilônicos? Não seria a hora de crer num deus que fora superior a Javé, que protegera com mais eficiência seus súditos, outorgando-lhes melhores favores que os magros benefícios obtidos suplicando ao Deus de Israel?
Caíram, então, as ilusões num Deus que parecia não ter podido cumprir suas promessas e o povo, em crise, começou a passar em massa para a nova religião dos conquistadores, com a esperança de que um deus de tal envergadura melhoraria sua sorte e seu futuro.
Crer em terra estrangeira: Diante desta situação em que vivia o decaído povo judeu durante o cativeiro babilônico, um grupo de sacerdotes, também prisioneiro, começa a tomar consciência deste abatimento do povo e reage. É preciso voltar a catequizar o povo.
A religião babilônica que estava fascinando os hebreus era dualista, ou seja, admitia dois deuses na origem do mundo: um, bom, encarregado de fazer todo o belo e positivo que o homem observava na criação; outro mau, criador do mal e responsável pelas imperfeições e desgraças deste mundo e do homem.
Além disso, na Mesopotâmia pululavam as divindades menores às quais se rendiam culto: o sol, a lua, as estrelas, o mar, a terra.
No exílio Israel começou a perder progressivamente suas práticas religiosas, de modo especial a observância do sábado, sua característica recordação da libertação de Javé do Egito.
Nasce um capítulo: Aqueles sacerdotes compreenderam que o velho relato da criação que o povo tanto conhecia (Gn 2) já não servia. Tinha perdido sua força. Era preciso escrever um novo, onde se pudesse apresentar uma vigorosa idéia do Deus de Israel, poderoso, que expressasse supremacia, excelso entre as criaturas. Começa assim a gestar-se o Gn 1.
Por isso, neste novo relato, chama atenção a minuciosa descrição da criação de cada ser do universo (plantas, animais, águas, terra, astros do céu) para deixar bem claro que nenhuma delas eram deuses, senão simples criatura, todas subordinadas ao serviço do homem (v. 17-18).
Contra a idéia de um Deus bom e outro mau no cosmos, os sacerdotes repetem constantemente, de forma quase obsessiva, à medida que vai aparecendo cada criatura: "e Deus viu que era bom", ou seja, não há nenhum deus mau criador no universo. E quando cria o ser humano diz que era "muito bom" (v. 31), para não deixar nenhum espaço dentro do homem que fosse jurisdição de uma divindade do mal.
Finalmente, o Deus, que trabalha seis dias e descansa no sétimo, queria somente ser exemplo para propor aos hebreus a volta da observância do sábado.
Um Deus atualizado: Assim, a nova descrição da criação por parte dos sacerdotes era um renovado ato de fé em Javé, o Deus de Israel. Daí a necessidade de mostrá-lo solene e transcendente, tão distante das criaturas que já não precisam ser modeladas ao barro, pois bastava-lhe sua Palavra onipotente para criá-las à distância.
Cem anos depois, lá por 400 a.C., um último redator decidiu compor num livro toda a história de Israel, desde o princípio, recopiando velhas tradições. E se deparou com os dois relatos da criação. Resolveu, então, apesar das evidentes contradições, conservar os dois. Mostrou, no entanto, sua preferência por Gn 1, o relato dos sacerdotes, mais despojado de antropomorfismos, mais respeitoso e o colocou como porta de entrada de toda a Bíblia. Não quis, porém, suprimir o antigo relato do javista e o colocou a seguir, apesar das evidentes contradições. Com isso manifestava que, para ele, Gn 1 e Gn 2 relatavam, de maneira distinta, a mesma verdade revelada, tão rica, que não bastava um só relato para expressá-la.
Dois é pouco: Numa recente pesquisa nos Estados Unidos, constatou-se que 44% dos habitantes continua crendo que a criação do mundo ocorreu tal como relata a Bíblia. E muitos, atendo-se aos detalhes dessas narrativas, escandalizam-se diante das novas teorias sobre a origem do universo, da aparição do homem e da evolução.
Mas o redator final do Gênesis ensina algo importante. Reunindo num só relato ambos os textos, mesmo conhecendo seu caráter antagônico, mostrou que para ele este aspecto científico não era mais que um acessório, uma maneira de expressar-se. O redator bíblico se perturbaria se visse que hoje substituímos esses esquemas pelo modelo mais provável do Big Bang e o da formação evolutiva do homem? Suponho que não.
A própria Bíblia, por esta justaposição pacífica de diferentes modelos cosmogônicos, manifestou sua relatividade. Os detalhes científicos não pertencem à mensagem bíblica. Não passam de um meio sem o qual não se poderia anunciar a mensagem.
O mundo não foi criado duas vezes. Somente uma. Mas, mesmo se o relatássemos em capítulos distintos, não terminaríamos de abraçar o mistério íntimo desta obra amorosa de Deus.
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Texto extraído do livro: "Que sabemos sobre a Biblia"; volume 02, de Ariel Álvares Valdés. Editora Santuário-SP.