TEMA: “Casa comum, nossa responsabilidade”
LEMA: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”.
A Campanha da Fraternidade deste ano tem como objetivo geral “assegurar o direito ao saneamento básico para todas as pessoas e empenharmo-nos, à luz da fé, por políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade e o futuro de nossa Casa Comum”.
O lema bíblico apoia-se em Amós 5,24 que diz: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”. O objetivo principal da iniciativa será chamar atenção para a questão do saneamento básico no Brasil e sua importância para garantir desenvolvimento, saúde integral e qualidade de vida para todos.
O bem comum, desejado por Deus, é o grande objetivo da Sagrada Escritura. Da adesão ao projeto do Reino de Deus e, portanto, o compromisso com a construção do bem comum é que depende a salvação individual.
Quando falamos do bem comum, não podemos restringi-lo somente à relação dos seres humanos entre si, mas também destes com a natureza, que deve ser cuidada com gratidão e respeito. E o uso da natureza e de todos os bens materiais deve acontecer de forma justa e voltada para a construção de uma coletividade com mais igualdade, ao invés de serem utilizados para suprir a ganância de alguns.
A escolha do texto de Amós, não é por acaso. Amós fundamenta sua pregação profética numa denúncia social aguda, chamando a atenção para um progresso econômico que não se traduzia em igualdade e justiça para todos. Sua denúncia aponta para uma situação de caos social, onde as relações afetivas estavam se rompendo (Amós 2,6-8). Com suas denúncias, Amós revela que a fé em Deus estava sendo manipulada pela religião oficial (Amós 4,4-5). Deus quer justiça e dignidade para todos. Não apenas para Israel e Judá (Amós 9,7-8). Mas quem foi este profeta?
Amós atuou em Israel, na metade do século 8º a.C, durante o reinado de Jeroboão II (783-743 a.C), décimo terceiro reis do reino do norte, época de enriquecimento, mas na qual o luxo dos grandes contrastava com a miséria do povo e o esplendor do culto mascarava uma falsa religião.
Não é profeta da corte nem do templo nem filho de profeta, é simples pastor de Técua: Não “sou profeta, nem discípulo de profeta, sou criador de gado e cultivador de sicômoros” (7,14), como ele mesmo se define. É um rude camponês de olhos bem abertos e sem pelos na língua, natural de Judá, reino do sul, mas chamado por Deus a trabalhar em Israel, no reino do norte.
Seu lugar preferido para falar em público era o santuário de Betel, pois lá encontrava sempre muita gente que vinha oferecer seus sacrifícios e trazer suas ofertas, agradecendo a Deus pela prosperidade que estava concedendo ao povo.
Contudo essa prosperidade era falsa, porque, como já vimos, a exploração e a injustiça, o roubo e o suborno permitiam que alguns se deitassem em divãs de marfim e se regalassem em festas intermináveis (Am 6,1-7), enquanto as pessoas iam ficando cada vez mais pobres e excluídas. O povo não percebia isso. Continuava a acreditar na propaganda enganosa das autoridades governamentais. Deixava-se convencer pela pregação espiritualista dos líderes religiosos, que legitimavam a situação, fazendo perigosas concessões ao baalismo
Apesar de ter sido um período de certa estabilidade econômica e prosperidade comercial, grande parte da população enfrenta dificuldades com endividamento, perda da terra e crescente escravidão. No meio desse contraste, levanta-se a voz do profeta, que mostra o rosto justo de Javé, sempre ao lado dos pobres.
Suas principais denúncias foram contra a exploração dos camponeses; a concentração da riqueza nas mãos de poucos; a religião falsa e farisaica; os juízes a serviço do dinheiro mais do que da justiça; a decadência da nação, resultado da má administração e das ameaças externas; os comerciantes injustos e desonestos; as mulheres ricas que estimulam os maridos a explorar os fracos. Numa palavra, muito o incomodaram o luxo de um lado e a pobreza de outro, os comerciantes gananciosos e fraudulentos.
Amós se propôs a ser a voz dos camponeses, levantando-se contra esse sistema de exploração e injustiça, claramente identificado como idolatria, porque levava ao abandono do Senhor e de seu projeto (Aliança), para servir a outros deuses, ou seja, a outros projetos que escravizam e matam. Esse seu grito em defesa do pobre é para ele um "rugido do Senhor" (1,2), um imperativo ao qual ele não pode resistir (3,3-8). Essa é a sua vocação profética.
Suas intervenções, portanto, são sempre marcadas pela clareza de opção social ao lado dos deserdados, dos excluídos, dos injustiçados (veja-se, por exemplo, Am 2,6-8; 3,13-15; 5,10-13; e especialmente 8,4-6). Tal opção, resultou, é claro, em conflito. E não demorou muito: parece que Amós não atuou mais do que dois anos. A classe dirigente da nação estava conduzindo o país à ruína, mas parece que só Amós conseguiu ver isso. Ele profetizou a morte do rei, a deportação do povo, e até mesmo o avanço das tropas assírias sobre o país. Era a declaração da falência do sistema apregoado pelos dirigentes políticos e religiosos. Isso custou a Amós sua expulsão de Israel pelo sacerdote de Betel, Amasias (Am 7,10-17).
Com Amós teve início uma nova fase no profetismo em Israel, que contribuiu intensamente para o enriquecimento do material bíblico. Suas palavras, sua vida e suas reflexões passam a ser consignadas por escrito, dando-se origem à literatura profética. Inicia-se a "época de ouro" do profetismo bíblico. A partir dele, os profetas não serão apenas questionadores de algumas políticas erradas dos governantes. Questionarão o próprio sistema monárquico de Israel e Judá, decretando a falência do modelo de sociedade baseado nesse esquema. A profecia de Amós conseguiu despertar a sensibilidade de mais gente para a realidade das coisas no reino do norte. Sua voz é marcada pela clareza de opção: os deserdados e excluídos. Tal opção acaba entrando em conflito com os detentores do poder político, econômico e religioso. Com isso, é expulso de Israel e assim retoma suas ocupações anteriores. Suas palavras e reflexões passam a ser registradas por escrito para servirem de questionamento ao longo da história da humanidade contra as injustiças que criam miséria, sofrimento e desigualdades.
É o grande defensor da justiça, fustigador impiedoso das desordens que prevaleciam numa era de prosperidade e ao mesmo tempo de miséria para grande parte do povo.
Amós ainda denuncia o culto vazio, repleto de louvores e oferendas a Deus, mas que não faz com que as pessoas pratiquem a justiça. Não são grandes oferendas que agradam a Deus, mas sim a prática do direito e da justiça (Amós 5,21-25). Este tema também é tratado pelos profetas Isaías, Oséias e Miquéias (cf. Isaías 32,18; Oséias 6,6). O profeta Miquéias, em breves palavras, resume este complexo assunto: “Foi-te dado a conhecer, ó homem, o que é bom, o que o Senhor exige de ti: nada mais que respeitar o direito, amar a fidelidade e aplicar-te a caminhar com teu Deus” (Miquéias 6,8).
Garantir os direitos essenciais para a vida humana e cuidar bem do planeta, são partes fundamentais da justiça exigida por Deus. Quando isso não acontece, diz o profeta que as feras, as aves do céu e até os peixes do mar desparecem (Oséias 4,1-3).
O que Deus quer de nós é que sejamos como jardineiros que cuidam da natureza com carinho. E, também, o cuidado uns dos outros, como quem cuida de plantas que amam. É esta imagem que está presente na descrição do livro do Gênesis, que relata a criação do mundo. Deus tomou Adão e o colocou no Jardim do Édem para que o cultivasse e guardasse (cf. Gênesis 2,15).
No Édem nascia um rio que se dividia em quatro braços, lembrando os quatro pontos cardeais e assim representando a terra inteira. Essas passagens iniciais da Bíblia ressaltam a importância do cuidado humano pela integridade da criação. A água limpa e potável, também aparece como símbolo da vida quando Moisés fez brotar o líquido da vida no deserto (Êxodo 17,6). É também a água como símbolo da vida que Jesus anuncia à samaritana (João 4,14). Na Nova Jerusalém do Apocalipse temos de novo um símbolo que evoca a água como fonte da vida (Apocalipse 22,1-2).
Na Bíblia há vários relatos que já anunciam a necessidade de manter limpa a natureza e o cuidado com o líquido precioso:
Todas estas atividades devem estar sempre envolvidas com o cuidado para com os mais pobres (Deuteronômio 23, 25; 24, 14-15.19-22, conforme Tiago 5,1-6). Assim como não se deve explorar o trabalhador, que tem o direito ao descanso, também a terra, a cada sete anos deve ter o descanso (Levítico 25, 2-7).
SANEAMENTO BÁSICO E PRÁTICA DA JUSTIÇA
Voltando ao lema de Amós (5,24) que anima nossa Campanha da Fraternidade Ecumênica, o profeta compara a prática da justiça como uma fonte que jorra água limpa e com um rio perene que não seca jamais.
A comparação que Amós faz da água que jorra com a prática da justiça, lembra que o bem-estar de todos os habitantes de um lugar deve ser o objetivo de todo serviço público. Ninguém pode buscar apenas o lucro fácil e rápido em detrimento dos direitos dos demais. É como se uma pessoa represasse um rio só para si, formando um enorme açude enquanto todos adiante ficam apenas com um fiozinho de água.
Jesus denuncia a ganância e os ritos vazios, que privilegia os puros (aqueles que detinham o poder econômico) e marginaliza os impuros (os pobres e enfermos na época eram vistos como abandonados por Deus e por isso eram marginalizados). Por isso Jesus disse: “felizes os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mateus 5,6-7).
Vivemos numa sociedade urbana organizada em torno dos princípios da economia de mercado. Nesta sociedade os “abençoados” são os que têm poder de compra. Tudo se torna mercadoria, inclusive os bens primordiais como a água e a terra.
Neste tipo de sociedade, os benefícios públicos acabam sendo destinados às regiões mais abastadas. Bairros populares terminam sendo deixados em segundo lugar, sem os benefícios do esgotamento, coleta de lixo, transporte público, boas escolas, etc.
Refletindo sobre tudo isso, fica bem claro que a fidelidade a Deus precisa se manifestar na preservação de tudo o que é necessário para que a grande família humana possa viver com dignidade e justiça em um ambiente bem cuidado. Mas não basta refletir. Como Jesus nos mostrou na parábola dos dois filhos chamados a trabalhar na vinha (Mateus 21,28-31), não basta ter um bom discurso, o importante é entrar em ação, transformando o mundo do modo como Deus deseja.
Amos anuncia a justiça. Jesus também anuncia a justiça. Cada qual o faz com a visão própria de seu tempo e de sua época. A questão das relações justas entre seres humanos entre si e para com o meio ambiente diz respeito não apenas as igrejas, mas a toda a humanidade. Os cristãos e as cristas têm, a partir de suas tradições, uma grande contribuição a dar. Mas devem trabalhar unidos e também em parceria com os que, fora de sua fronteira religiosa, querem o bem da humanidade e a preservação saudável do planeta.
Podemos trazer para nossa reflexão uma contribuição do Papa Francisco. Ele insiste que a igreja de Cristo deve ser “pobre para os pobres” Isso vale para qualquer igreja, porque é missão das igrejas serem hoje a Voz profética. Na Encíclica Laudato Si, sobre o cuidado da Casa Comum, o Papa Francisco diz: “O amor cheio de pequenos gestos de cuidado mutuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. O amor social é a chave para o desenvolvimento autêntico: ‘Para tornar a sociedade mais humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar natureza e seus fenômenos correspondem divindades que fazem fluir a vida e de quem nascem as criaturas humanas. O ar e a agua ligam todas as coisas. Cuidar de cada pessoa, da natureza e das manifestações de vida é também cuidar de si mesmo. Tudo é um só corpo alimentado por ar e agua. Imagine-se uma grande arvore constituída de tudo o que há no planeta, a seiva que circula e está presente em tudo é a agua. Portanto, paras as religiões de matriz africana. Sem folhas não tem Orixás e sem agua não tem Axé.
E nós? Estamos sabendo valorizar os dons de Deus, percebidos na riqueza dos recursos naturais e na preciosa vida de todos os irmãos e de todas as irmãs que o Criador nos deu? Como estamos desenvolvendo a tarefa de cultivar e guardar o mundo que e a nossa grande Casa Comum?
Refletindo sobre tudo isso, fica bem claro que a fidelidade a Deus precisa se manifestar na preservação de tudo o que é necessário para que a grande família humana possa viver com dignidade e justiça em um ambiente bem cuidado. Mas não basta refletir. Como Jesus nos mostrou na parábola dos dois filhos chamados a trabalhar na vinha (Mt 21,28-31), não basta ter um bom discurso, o importante é entrar em ação, transformando o mundo do modo como Deus deseja. Então, nãos a obra, vamos agir!